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Efeitos da ancoragem na sentença criminal

Por Cristiano Zanin Martins e Graziella Ambrosio

 

Recentes julgamentos do Supremo Tribunal Federal trouxeram à tona graves problemas que o processo penal vem enfrentando no Brasil em virtude da conduta indevida de alguns integrantes do sistema de Justiça, como é o caso da quebra da imparcialidade [1]. Outros óbices ao processo justo podem ser constatados e enfrentados através da interação do Direito com a Psicologia Forense. É o caso da ancoragem, que resulta em sentenças condenatórias mais rígidas e com penas mais elevadas em virtude do comportamento processual do Ministério Público e até mesmo de atores externos ao processo, como a mídia.

Em primeiro lugar, para compreender a ancoragem, é preciso voltar a um estudo realizado na década de 1970, quando pesquisadores cognitivos solicitaram aos participantes que respondessem a duas perguntas sobre a porcentagem de nações africanas na Organização das Nações Unidas (ONU). Para a primeira pergunta, os pesquisadores giraram a roleta e pediram aos participantes que indicassem se a porcentagem de nações africanas na ONU era maior ou menor do que o número arbitrário (âncora) indicado pela roleta. Em seguida, os pesquisadores solicitaram que os participantes dessem sua melhor estimativa dessa percentagem. Os resultados mostraram que os julgamentos dos participantes estavam atrelados à âncora explicitamente aleatória. Essa pesquisa evidenciou que os julgamentos sob incerteza podem ser guiados por números, mesmo que sejam determinados aleatoriamente, como, por exemplo, os escolhidos por uma roleta [2]. Esse é o estudo mais conhecido sobre os efeitos da chamada ancoragem nos julgamentos.

ancoragem pode ser entendida como "a assimilação de um julgamento numérico em relação ao padrão (a âncora) de uma comparação anterior" [3]. Esses efeitos de assimilação podem estar presentes em uma variedade de julgamentos como, por exemplo, a altura de um portão, o comprimento de um rio, a idade de uma pessoa, o valor de um carro usado ou o preço de um imóvel. Além disso, os efeitos da ancoragem não dependem da motivação dos participantes para fornecer um julgamento preciso e não são reduzidos por advertências [4].

Mas se a ancoragem pode alterar o julgamento de situações simples do cotidiano, seria essa ferramenta apta a influenciar o julgamento de profissionais treinados como tomadores de decisões sobre questões com enormes consequências como uma sentença criminal? A resposta é positiva, como exposto no pórtico deste artigo.

Nessa linha, sobre o papel da ancoragem no processo criminal, merecem destaque os estudos desenvolvidos por Birte Englich e outros pesquisadores que mostraram que os juízes, mesmo os mais experientes, são fortemente influenciados pela pena pedida pelo órgão acusador (âncora) [5]. Essas pesquisas revelaram que as sentenças criminais estão sujeitas aos efeitos da ancoragem a partir do pedido da acusação: a promotoria expõe representações numéricas de sua percepção sobre o caso, geralmente por meio de pedidos de penas elevadas, e a sentença criminal é fortemente influenciada por essa proposta de condenação.

Poder-se-ia duvidar de que um número arbitrário, que é determinado aleatoriamente, teria qualquer influência na tomada de decisão judicial. No entanto, para testar essa possibilidade extrema, Birte Englich, Thomas Mussweiler e Fritz Strack realizaram experimentos nos quais os valores de âncora foram determinados por um processo aleatório que era totalmente transparente para os juízes [6]. Os participantes de seu primeiro experimento eram profissionais do Direito (37 juízes e dois promotores) com uma experiência profissional média de 13 anos. Os participantes foram convidados a proferir uma sentença em um caso fictício de furto em uma loja no qual uma mulher havia subtraído alguns itens de um supermercado pela décima segunda vez. Depois de ler o material do caso, alguns dos participantes foram apresentados a um pedido formulado pela promotoria com vistas à aplicação de uma pena mais alta (nove meses em liberdade condicional). Outros participantes foram submetidos a um pedido com uma pena mais baixa (três meses em liberdade condicional). Os participantes foram designados aleatoriamente a uma das duas âncoras. As instruções claramente indicavam que as penas pleiteadas eram números gerados aleatoriamente e que não representavam qualquer experiência judicial.

Os participantes tiveram de indicar se consideravam a pena pleiteada pela promotoria, determinada aleatoriamente, "muito baixa", "muito alta" ou "na medida certa". Por fim, os participantes foram instruídos para se colocar no papel de juiz do caso e proferir uma sentença. Os resultados mostraram que as sentenças variaram de absolvição a 12 meses em liberdade condicional. Mais importante, as penas das sentenças foram mais altas nos casos em que o pedido aleatório era por uma pena maior. Assim, a pena pedida pela promotoria claramente influenciou os julgadores, ainda que essa pena tenha sido determinada aleatoriamente, conforme previamente explicitado aos participantes.

Para ter certeza de que os participantes estavam cientes da natureza aleatória da pena pedida pelo promotor, Birte Englich, Thomas Mussweiler e Fritz Strack conduziram um segundo estudo [7]. O procedimento experimental nesse segundo estudo foi semelhante ao do estudo um. A diferença crucial foi a de que os participantes do estudo dois determinaram a pena pedida pela promotoria jogando dados: esse procedimento deixava absolutamente claro para os participantes que a pena pedida era determinada ao acaso. Apesar de todas essas precauções para garantir uma percepção de que a seleção da pena pedida pela promotoria fosse vista como aleatória, houve um efeito de ancoragem claro nas decisões de condenação dos juízes, que variaram de um mês em liberdade condicional a doze meses em liberdade condicional. Os juízes proferiram sentenças com penas mais elevadas quando foram apresentados a pedidos do órgão acusador objetivando a aplicação de penas mais altas do que quando foram apresentados a pedidos com penas mais baixas.

Por fim, Birte Englich, Thomas Mussweiler e Fritz Strack conduziram outro estudo para avaliar se âncoras completamente irrelevantes poderiam influenciar julgamentos [8]. Nesse experimento, os participantes foram expostos a uma fonte jornalística que, por motivos jurídico-processuais, deveria ser irrelevante para a decisão do juiz. Os resultados mostraram que mesmo âncoras claramente irrelevantes também influenciam julgamentos. Nessa linha, por exemplo, embora uma frase sugerida por um jornalista não devesse influenciar uma sentença criminal, a pesquisa revelou que os participantes aplicaram penas mais altas quando foram expostos a uma âncora, que mesmo irrelevante, defendia uma punição mais rigorosa.  

Tomados em conjunto, esses resultados demonstram que as decisões de condenação dos juízes criminais estão sujeitas a influências de ancoragem. Mesmo que os juízes saibam que o número que lhes foi apresentado não deve ser usado em uma decisão condenatória ou na fixação da pena, eles assimilam o valor fornecido às suas sentenças. Os estudos encontraram tais efeitos de ancoragem, mesmo quando as âncoras não eram intencionalmente fornecidas, mas claramente determinadas de forma aleatória. Os magistrados participantes ancoraram suas sentenças sobre a pena sugerida pelo Ministério Público mesmo que eles mesmos tivessem determinado esse pedido de punição jogando dados.

 Fonte:Conjur.com.br