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Por Rodrigo da Guia Silva e Marcela Guimarães Barbosa da Silva
Imaginem-se as seguintes situações: um ator é julgado e absolvido sem sequer saber as acusações que recaíram sobre si; outro ator é confundido com um robô e precisa provar que é um ser humano; um influenciador digital com cerca de um milhão de seguidores é sumariamente cancelado, igualmente sem ser informado previamente sobre o teor das acusações levantadas em seu desfavor. Esse poderia ser, sem dúvidas, o enredo de um filme de deliberada inspiração kafkiana, mas apenas traduz a ilustração de casos reais verificados no âmbito das redes sociais virtuais.
Por ordem temporal, o primeiro caso citado diz respeito ao bloqueio do perfil do ator Tonico Pereira na rede social virtual Facebook, sem explicitação do motivo. A relevância desse caso à presente análise se dá, principalmente, pelas afirmações do ator quando de sua volta à rede do qual havia sido bloqueado: "Não sei de que fui acusado nem por que fui absolvido, mas estou aqui. Eu gostaria de, quando acusado de alguma coisa, eu ser comunicado, como manda a lei, para que eu pudesse fazer, pelo menos, a minha defesa. Mas não é assim que acontece" [1]. Não seria singela a missão de encontrar um resumo mais contundente da problemática que move a presente reflexão.
O segundo caso, por sua vez, consiste no bloqueio do perfil do ator Antonio Fagundes na rede social virtual Instagram após ser erroneamente confundido com robô por dar a mesma resposta (emoji de uma flor) para diversos comentários. O relato fornecido pelo ator é emblemático: "Na sexta-feira eu postei uma foto minha com a Alexandra no camarim, lembrando do teatro e eu recebi comentários tão lindos. Todo mundo sabe que sou eu mesmo quem responde, que leio e curto todos os comentários, respondo pra alguns. E esses eram todos tão lindos que eu resolvi que eu ia comentar cada um que tinha feito uma postagem pra mim. (...) Respondi com uma florzinha pra cada um e, o que aconteceu? O Instagram bloqueou os meus comentários porque eles acharam que era um robô. Mas não era, não, era euzinho mesmo" [2]. Somente após seu retorno à rede, o ator conseguiu se manifestar explicando a situação aos seus seguidores.
Por fim, o terceiro e mais recente caso diz respeito à exclusão do perfil do influenciador digital Ícaro de Carvalho, que à época contava com a expressiva marca de cerca de um milhão de seguidores [3]. Sem esclarecimentos em detalhes, mesmo após abertura de processo judicial contra a plataforma, a rede social virtual Instagram somente "justificou" a exclusão sumária do perfil com base em suposta violação dos termos de uso da plataforma — sem especificá-la, contudo.
Em tentativa de compreensão de tais casos a partir de uma abordagem conjunta, é possível destacar dois importantes pontos em comum — pontos que, a bem da verdade, convergem e se fazem presentes na grande maioria dos casos em que ocorre bloqueio ou exclusão de contas ou conteúdos de forma sumária: 1) transparência insuficiente; e 2) implementação do bloqueio ou exclusão sem comunicação prévia ao usuário. Ambos os elementos acarretam gravíssimos problemas de índole estritamente jurídica (como o impedimento à defesa, à liberdade de expressão e às demais liberdades individuais) [4] e mesmo de ordem material (basta pensar no impedimento ao trabalho de influenciador digital ou à utilização das redes como veículo de propaganda).
Urge, portanto, refletir acerca da legitimidade ou não da exclusão unilateral de contas ou conteúdos particulares, pelo provedor de rede social virtual, sem oitiva prévia do usuário, inclusive (ou sobretudo) se tal modus operandi estiver previsto nos termos de uso da plataforma.
A relevância e a atualidade de tais discussões se associam diretamente à recente criação, pelo grupo Facebook, do Comitê de Supervisão (Oversight Board, na denominação em inglês). Trata-se de instituição declaradamente autônoma que possibilita (com inúmeras restrições, ressalte-se) o manejo de recursos contra decisões sumárias de remoção de conteúdos das plataformas de mídia social Facebook e Instagram. Nas hipóteses em que admitida a sua atuação, o Comitê de Supervisão decide, em última instância (em âmbito particular e extrajudicial), um número restrito de casos emblemáticos envolvendo conteúdos controvertidos. Instituído pelo grupo Facebook em 2020, o Comitê de Supervisão tem o objetivo de "promover a liberdade de expressão por meio da tomada de decisões independentes e baseadas em princípios com relação ao conteúdo no Facebook e no Instagram e por meio da emissão de recomendações sobre a política de conteúdo relevante da empresa do Facebook" [5].
Preliminarmente, vale destacar algumas circunstâncias dignas de nota: 1) parece inequívoco que a criação do Comitê de Supervisão proporcionou certo acesso às garantias de contraditório, ampla defesa e devido processo legal, mas não se pode perder de vista que a efetiva oitiva dos usuários acerca da exclusão de seus conteúdos pela plataforma acontece somente em âmbito revisional; 2) nem todas os recursos enviados são analisados pelo comitê, mas, sim, apenas aqueles reputados mais controversos — "um número seleto de casos altamente emblemáticos", a fim de aferir "se as decisões do Facebook foram tomadas de acordo com os valores declarados pela plataforma" — [6], de modo que em muitos casos os usuários continuam sem a oportunização do exercício do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal; e 3) as decisões sumárias abarcadas pelo comitê para julgamento de recursos limitam-se a moderações de conteúdos e publicações específicas, sem abranger a possibilidade de veiculação de pleitos por usuários afetados pela exclusão integral de seus perfis.
A ilustrar a atuação do Comitê de Supervisão — e, com isso, ressaltar a relevância e a atualidade do tema —, adotar-se-á, como paradigma, o caso 2020-004-IG-UA, o primeiro relativo a usuários do Brasil. O caso teve início em outubro de 2020, quando um usuário do Instagram teve seu conteúdo removido por um sistema automatizado que, após denúncia por outro usuário, concluiu pela incompatibilidade da publicação com o Padrão da Comunidade sobre Nudez Adulta e Atividade Sexual do Facebook. A publicação em questão era relativa à campanha Outubro Rosa para conscientização sobre o câncer de mama em seus primeiros sinais, e exibia, em uma imagem cor-de-rosa, oito fotografias contendo sintomas da doença, das quais cinco mostravam mamilos femininos.
Diante da recusa do Facebook em revogar a exclusão sumária, o usuário autor da publicação solicitou a revisão de tal decisão automatizada pelo Comitê de Supervisão — que concluiu que a decisão de exclusão originariamente adotada pelo Facebook deveria ser anulada tendo em vista que "o conteúdo era permitido de acordo com uma exceção da política para ‘conscientização sobre o câncer de mama’ no Padrão da Comunidade do Facebook sobre Nudez Adulta e Atividade Sexual".
Sem adentrar no mérito da imprescindível aferição da legitimidade das disposições contidas nas diretrizes de cada plataforma, tem-se que a análise até aqui realizada suscita o seguinte questionamento: é possível reconhecer a aplicabilidade das garantias fundamentais do contraditório, da ampla defesa e devido processo legal no contexto da exclusão sumária de contas ou conteúdos de usuários por plataformas de redes sociais virtuais?
A realidade contemporânea e o estado atual do Direito brasileiro reclamam, em caráter de urgência, uma resposta afirmativa, com base em premissas teóricas como a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e, em especial, a sua aplicabilidade direta e imediata, amplamente reconhecidas na experiência brasileira [7]. Tais premissas conduzem ao reconhecimento da oponibilidade do contraditório, ampla defesa e devido processo legal pelos usuários, independentemente de intermediação legislativa ou da qualificação (estatal ou não estatal) do conteúdo da atuação do provedor da rede social virtual [8]. Afinal, tal linha de compreensão da matéria, alinhada com a metodologia civil-constitucional [9], permite reconhecer que a aplicabilidade das referidas garantias processuais traduz simples (mas extremamente importante) concretização da premissa teórica relativa à aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações jurídicas mantidas entre particulares.
Não se trata de raciocínio inédito na experiência brasileira. Rememore-se, ao propósito, o denominado "caso da União Brasileira de Compositores": o cerne da questão de direito submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal naquela ocasião dizia respeito precisamente à necessidade ou não de respeito ao contraditório e à ampla defesa na exclusão de afiliado de associação civil. Superando-se o entendimento da relatora originária — que admitia a liberdade das associações em sua organização e no estabelecimento de normas internas —, veio a prevalecer o voto-vista do ministro Gilmar Mendes, com o reconhecimento de que o caso versaria sobre verdadeira hipótese de eficácia horizontal dos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa. Concluiu-se, assim, pela ilegitimidade da exclusão do associado sem que lhe houvesse sido oportunizado previamente o exercício dos seus direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa [10].
Tal caso assume especial relevância para a compreensão da temática objeto da presente reflexão, diante da similitude, ao menos em três principais aspectos, entre o referido caso apreciado pelo Supremo Tribunal Federal e a situação fática ora sob análise. Em um primeiro paralelo, mostra-se possível entender a União Brasileira de Compositores como rede social (conquanto não virtual), diante das interações mantidas no seio de tal grupo social. Um segundo paralelo, por sua vez, consiste no risco de afronta ao conteúdo material das liberdades individuais dos associados por ocasião da exclusão sumária implementada pela associação, o que se poderia equiparar ao risco de afronta ao conteúdo material das liberdades individuais dos usuários por ocasião da exclusão sumária de contas e/ou conteúdos por parte da plataforma. No que tange ao terceiro e mais evidente paralelo, percebe-se que as discussões, em ambos os cenários, têm como núcleo fundamental a observância das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Justifica-se, portanto, também com base na análise da experiência jurisprudencial brasileira, o reconhecimento da aplicabilidade dos direitos fundamentais ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal no contexto da exclusão de contas ou publicações pelos provedores das redes sociais virtuais. Evidencia-se, nesse diapasão, a necessidade de se assegurar aos usuários das redes sociais virtuais o direito ao contraditório e à ampla defesa no contexto do bloqueio ou exclusão sumários de contas e/ou conteúdos pelas respectivas plataformas, independentemente de ter sido feita a moderação preliminar por sistema automatizado (hipótese mais frequente) ou por pessoa humana. Por via de consequência, caso violadas tais prerrogativas, o usuário vitimado poderá se valer dos instrumentos ordinários de tutela, tais como a determinação judicial da imediata restauração da conta ou publicação e a condenação do provedor à reparação dos danos injustos (morais e/ou materiais) devidamente comprovados.
Como se nota, o panorama contemporâneo tem suscitado graves dificuldades ao exercício do contraditório e da ampla defesa, em particular diante da frequente implementação de procedimento sumário, sem oitiva de usuários e sem a devida transparência, quando da moderação de contas ou conteúdos pelas plataformas das redes sociais virtuais. À luz desse contexto, impõe-se o reconhecimento da aplicabilidade dos direitos fundamentais entre particulares (destacadamente o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal) no âmbito das redes sociais virtuais.
Ao eventual acerto das premissas ora propugnadas espera-se que se some, na sequência do raciocínio, o aprofundamento da análise de questões igualmente relevantes, tais como a definição do prazo razoável para o exercício do direito de defesa e a delimitação do espectro de dilação probatória a serem facultados aos usuários das redes antes da implementação da exclusão sumária da publicação ou do inteiro perfil. A questão se afigura importante e premente para a adequada tutela dos direitos titularizados pelos usuários das redes sociais virtuais. Oxalá possa a comunidade jurídica brasileira, a partir dessas reflexões, desenvolver um arcabouço sociojurídico em que, por exemplo, não se consume o bloqueio do perfil de um artista sem lhe possibilitar previamente a explicação de que a "irregularidade" detectada pela plataforma não decorreu da ação de um sistema automatizado, mas tão somente da gentileza humana na forma de uma série de respostas com flores aos seus fãs.
[1] Tonico Pereira reclama em vídeo após ter perfil no Facebook bloqueado. Tecnologia e games. G1, 08/04/2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/04/tonico-pereira-reclama-em-video-apos-ter-perfil-no-facebook-bloqueado.html>. Acesso em: 24/08/2021.
[2] Antônio Fagundes é bloqueado por Instagram após responder fãs: "Acharam que era um robô". Pop & arte. G1, 10/08/2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/08/10/antonio-fagundes-e-bloqueado-por-instagram-apos-responder-fas-acharam-que-era-um-robo.ghtml>. Acesso em: 24/08/2021.
[3] MONROE, Thiago. A ilegal exclusão do perfil de Ícaro de Carvalho do Instagram e a liminar que ordenou seu restabelecimento. Migalhas de peso. Migalhas, 23/06/2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/347497/a-ilegal-exclusao-do-perfil-de-icaro-de-carvalho-do-instagram>. Acesso em: 24/08/2021.
[4] Nesse sentido, v. BINICHESKI, Paulo Roberto. Liberdade de expressão na era da internet: O dilema das redes sociais. Garantias do consumo. Consultor Jurídico, 09/06/2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-jun-09/garantias-consumo-liberdade-expressao-internet-dilema-redes-sociais>. Acesso em: 13/07/2021.
[5] Descrição extraída da página oficial do Oversight Board. Disponível em: <https://oversightboard.com/>. Acesso em 24/08/2021.
[6] Descrição extraída da página oficial do Oversight Board. Op. cit.
[7] Ao propósito de tais premissas, v., por todos, KONDER, Carlos. Direitos fundamentais e relações privadas: o exemplo da distinção por gênero nos planos de previdência complementar. Interesse Público, a. 18, n. 99, set.-out./2016, p. 47 e ss.; e LEAL, Pastora do Socorro Teixeira; e RODRIGUES, Leandro Nascimento. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: análise crítica do Recurso Especial 201.819-8 e Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, vol. 19, n. 2, pp. 12-41, maio-ago./2018, passim.
[8] Assis sustentamos, com mais detido desenvolvimento, em SILVA, Rodrigo da Guia; SILVA, Marcela Guimarães Barbosa da. Contraditório e ampla defesa na exclusão de perfis e publicações por provedores de redes sociais virtuais: notas sobre a eficácia horizontal de direitos fundamentais no contexto virtual. In: EHRHARDT JR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (Coord.). Direito civil e tecnologia — tomo II. No prelo.
[9] Para a adequada compreensão da metodologia civil-constitucional, v., por todos, TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 5, 1997, passim; e MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, a. 17, p. 21-32, jul.-set./1993, passim.
[10] STF, 2ª T. RE nº. 201.819/RJ, Rel. ministro Ellen Gracie, Rel. p/ acórdão ministro Gilmar Mendes, julg. 11/10/2005.
Fonte:Conjur.com.br