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Por João Gabriel Cardoso e Joaquim Leitão Junior
Questão polêmica e que tem trazido inquietação aos operadores de Direito, principalmente aos delegados de polícia, advogados, defensores públicos, entre outros atores da fase inquisitorial da persecução penal, é se a negativa pelo delegado de polícia em possibilitar a participação do advogado do interrogado em oitiva(s) de testemunha(s) encontra amparo em nosso ordenamento pátrio.
Para iniciar esse debate devemos começar citando o dispositivo que gera toda essa polêmica, que é o artigo 7º, inciso XXI, alínea "a", do Estatuto da Ordem dos Advogados. O dispositivo em análise foi acrescido pela Lei nº 13.245/2016, diploma legislativo que conferiu direito ao advogado de assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento [1].
A redação do estatuto, em nossa opinião, não é das melhores, tanto é que tem rendido vários debates pelos juristas que atuam na seara criminal, pois, apesar de ser inconteste o estatuto assegurar ao advogado o direito de assistir a seus clientes em interrogatórios, ao mesmo tempo o dispositivo gera dúvidas acerca do direito de o advogado acompanhar depoimentos de testemunhas que depõem em desfavor do interrogando.
De um lado, advogados criminalistas defendem que o texto legal assegura tal direito, podendo o advogado acompanhar as oitivas de testemunhas que depõem em desfavor dos seus respectivos clientes.
Do outro lado, parte dos delegados de polícia defende que os advogados criminalistas teriam direito de assistir aos seus clientes apenas no que diz respeito ao interrogatório, não havendo essa prerrogativa quando estamos falando em oitivas de testemunhas.
A discussão em análise acaba tendo maior relevância prática — não se excluindo outras situações possíveis — nas ocorrências que envolvem flagrante, pois é nesse momento que o advogado criminalista acompanha o seu cliente e, ao mesmo tempo, possui a oportunidade de acompanhar as testemunhas que vão contribuir para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito (APFD), já que todos são conduzidos para o mesmo local e ouvidos em sequência.
A grande questão do presente artigo é questionar se a negativa em possibilitar ao advogado o acompanhamento de oitiva de testemunhas possuiria respaldo legal ou se constituiria conduta ilícita praticada pela autoridade policial, gerando a tal da nulidade absoluta mencionada no estatuto.
Num primeiro momento, humildemente, sustentamos que a redação não afirma existir tal direito, haja vista a sua falta de clareza do texto legal. Tanto é verdade o que estamos afirmando que o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de negar esse direito ao advogado. Inclusive, na Petição de nº 7.612/DF [2], o ministro Gilmar Mendes sustentou brilhantemente o seguinte:
"Destaco que a norma do artigo 7º, XXI, da Lei 8.906/94, prevê a assistência dos advogados aos investigados durante a realização dos interrogatórios e depoimentos de seus clientes, não estendendo essa prerrogativa aos depoimentos e interrogatórios dos demais investigados e testemunhas".
Para o ministro:
"A legislação vigente não avança para reproduzir no âmbito do inquérito policial, o modelo processual vigente na ação penal, no qual todas as provas são produzidas com a possibilidade de ciência, acompanhamento e participação dos acusados e de sua defesa (autodefesa e defesa técnica) inclusive com a formulação de perguntas diretamente às testemunhas e de esclarecimentos realizados por intermédio do juiz durante os interrogatórios dos corréus (arts. 188 e 212 do CPP)".
Ainda que descartássemos a tese apresentada, e considerássemos a existência do direito do advogado em acompanhar oitivas de testemunhas, surgiria a indagação se tal conduta praticada pelo delegado de polícia seria conduta ilícita ou abusiva.
Somos da opinião de que em situações como essa devemos afastar de imediato qualquer existência de ilícito no atual ordenamento jurídico, principalmente de ilícitos contidos na Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/19). O argumento é simples e não demanda complexidade de interpretação, já que em momento algum a legislação faz referência a esta conduta como figura típica. Observa-se que o artigo 43 do referido diploma altera a redação do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) de modo a punir criminalmente apenas a violação de prerrogativas contidas no artigo 7º, incisos II, III, IV e V, não prevendo, portanto, a conduta do artigo 7º, inciso XXI, como abusiva da Lei nº 13.869/19.
Também somos da opinião de que, ainda que houvesse tal previsão legal expressa nesse sentido, sustentaríamos a necessidade de comprovação do elemento subjetivo especial, requisito este imprescindível para a ocorrência do tipo penal, conforme delineia o artigo 1º, §1º, da nova lei. Observe-se que o dispositivo exige, alternativamente, a necessidade de se demonstrar o intuito de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, que o mero capricho ou a satisfação pessoal da autoridade que nega a presença do advogado nas oitivas de testemunhas.
Por fim, outro ponto, também de relevante importância e que merece discussão, diz respeito à existência de nulidade. Isso porque o Estatuto da Ordem dos Advogados afirma existir nulidade absoluta quando há negativa de o advogado participar dos interrogatórios ou depoimentos. Ocorre que a jurisprudência atual vem entendendo firmemente que não haveria se falar em nulidade absoluta. Nesse sentido são as lições de Renato Brasileiro de Lima, que cita inclusive posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Vejamos:
"Ainda que se queira objetar que se trata de verdadeira nulidade, o fato de a Lei nº 13.245/16 tê-la rotulado de absoluta não acarreta, de per si, a invalidação do referido ato, salvo se comprovado o prejuízo causado ao investigado. Afinal, conforme recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (v.g., STF, 2ª Turma, HC 117.102/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 25/06/2013), o reconhecimento de uma nulidade, ainda que absoluta, também pressupõe a comprovação do prejuízo. Por conseguinte, ainda que não seja franqueado ao advogado presente o direito de assistir a seu cliente investigado durante a realização do interrogatório policial, não há falar em invalidação do procedimento investigatório se este, por exemplo, permanecer em silêncio" (Lima, pag. 208, 2020).
Logo, podemos observar que o autor possui posicionamento contrário ao que dispõe o Estatuto da Ordem, sendo adepto à ideia de que a vedação do advogado na participação de interrogatórios e oitivas, no máximo, geraria a nulidade relativa, isso se for demonstrado prejuízo ao investigado, pois caso contrário, nem mesmo nulidade relativa geraria.
De todo o exposto, posicionamo-nos no sentido de que não há ilegalidade alguma na conduta do delegado de polícia que decide negar a participação do advogado em oitivas de testemunhas, primeiramente por inexistir permissivo legal no ordenamento jurídico brasileiro. Em segundo lugar, ainda que existam posicionamentos no sentido da admissibilidade de participação do advogado nas oitivas de testemunhas, seguimos o posicionamento da inexistência de crime contido na Nova Lei de Abuso de Autoridade, justamente por não haver amparo legal. E por derradeiro, ainda que haja posicionamentos favoráveis em conferir tal direito do advogado, sob pena de nulidade absoluta, demonstramos que há posição firme da doutrina e da jurisprudência pátria no sentido de que até mesmo nulidade absoluta necessita-se da comprovação de prejuízo, sob pena de não ser declarada.
Referências bibliográficas
— LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
— BRASIL. SITE DO STF. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752042346. Acesso em: 29 de jan. 2021, às 23h.
— BRASIL. SITE DO STF. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4312985 Acesso em: 29 de jan. 2021, às 23h.
[1] “Art. 7º São direitos do advogado: XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos”.
[2] Pet 7.612/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 12/03/2019.
João Gabriel Cardoso é delegado de Polícia no Estado do Ceará, professor do Curso de Carreiras Jurídicas Universo Juris, pós-graduado em Direito Administrativo pela Faculdade de Ciências Wenceslau Braz, autor de obras jurídicas, aprovado em diversos concursos na área de segurança pública e ex-servidor público federal da Universidade de Brasília (UnB).
Fontye:Conjur.com.br