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Um ensaio para uma proposta (inicial) de novo inquérito policial
02/05/2018

 

Por Leonardo Marcondes Machado

O inquérito policial, enquanto procedimento de investigação preliminar, compreende ao menos três momentos fundamentais: instauração, desenvolvimento e conclusão (indiciária) a respeito do caso penal. Ao contrário daqueles que entendem irrelevante do ponto de vista jurídico a “ordem procedimental”,[i] uma investigação preliminar democrática e garantista também deve ser regida por uma “sequencia de normas, de atos e de posições subjetivas”[ii]. Afinal, a forma é garantia (e condição de legitimidade procedimental) num sistema processual penal desenvolvido a partir do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, formulou-se a seguir uma proposta (nada definitiva) a respeito das linhas gerais de um procedimento policial de investigação preliminar. Trata-se, no fundo, de uma construção ensaística sobre uma possível reforma estrutural quanto ao rito estabelecido para o inquérito policial. As ideias, absolutamente iniciais, são colocadas à disposição dos leitores para o debate público na tentativa de estabelecer possibilidades concretas à fundação de outro paradigma investigativo preliminar policial no processo penal brasileiro que seja, ao mesmo tempo, efetivo (no que diz respeito ao controle das violências na gestão da conflitividade social[iii]) e humanitário (no sentido de limitador do exercício do poder punitivo e das nefastas consequências à subjetividade). Enfim, segue adiante o esboço reformista.

O Início
A instauração do inquérito policial representa uma fase inicial de admissibilidade da notícia crime pelo órgão de investigação conforme juízo de possibilidade delitiva e apuração preliminar no caso concreto, sempre em conformidade com a política estatal de persecução criminal em vigor. Essa etapa é marcada pelos seguintes atos: apresentação da notícia crime, verificação preambular das informações e decisão de recebimento ou rejeição da notícia crime. Por óbvio, essa decisão do órgão diretivo da investigação, que rompe com o mito da obrigatoriedade da persecução penal[iv], deve ser fundamentada e submetida a controle, inclusive externo (pelo MP).

O juízo de possibilidade delitiva e apuração preliminar, em questão, deve ser aferido em dois planos distintos: punitivo abstrato e investigativo operacional. A possibilidade (ou condição aparente) de incriminação e punição em relação a certa notícia crime deve ser analisada quanto às estruturas legais necessárias para o exercício do poder punitivo (tipicidade, ilicitude/antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade), bem como a viabilidade concreta de apuração naquele caso diante das informações apresentadas e dos instrumentos disponíveis à persecução criminal.

Em outras palavras, se presente manifesta causa excludente de tipicidade, ilicitude, culpabilidade ou punibilidade, inexiste justo motivo para a instauração do inquérito policial. De modo semelhante, quando a notícia crime oferecida, mesmo após diligências preambulares, não oferecer condições necessárias para o estabelecimento de uma linha investigativa concreta e condizente com o plano político criminal vigente, torna-se inútil a formal instauração de um procedimento, uma vez que natimorto. Em ambas as situações, a decisão será de indeferimento da notícia crime, porém com efeitos distintos. A primeira inviabiliza a instauração, a qualquer tempo, de investigação preliminar na espécie, uma vez que não se trata a rigor de notícia crime punível, tendo em vista que o fato narrado não reúne os pressupostos legais para a incidência sequer em tese do poder punitivo estatal. Já a segunda é tipicamente provisória, uma vez que não apresenta força de coisa julgada, sendo possível a instauração futura de inquérito policial a partir daquele mesmo caso, desde que presentes novos elementos de informação, que tornem viável o estabelecimento de uma linha investigativa concreta e segundo a política persecutória criminal estabelecida para aquele período.

O recebimento da notícia crime, por sua vez, depende de juízo afirmativo quanto à possibilidade delitiva e apuração preliminar na espécie, o que formalizado mediante portaria inicial lavrada pelo delegado de polícia com atribuição investigativa para aquele caso penal. Na portaria deverá constar obrigatoriamente o resumo da notícia crime, a identificação do órgão investigativo e as providências iniciais que marcam a fase seguinte do procedimento, qual seja, a etapa de instrução.

O Desenvolvimento
A fase instrutória é composta basicamente por atos de investigação[v], os quais, muito embora não sejam atos de prova, seguem disciplina legal equivalente no tocante às regras de nulidade. Registre-se que o desenvolvimento dessa instrução preliminar, própria do inquérito policial, busca reunir elementos informativos suficientes à conclusão indiciária (positiva ou negativa) do caso pelo delegado de polícia e, consequentemente, à análise de justa causa para a propositura (ou não) de uma ação penal pelo legitimado processual ativo (opinio delicti pública ou privada). Frise-se, portanto, que a cognição por aqui, tanto no plano quantitativo como qualitativo, em níveis horizontal e vertical, é sempre limitada[vi].

Os atos de investigação podem incluir oitivas de testemunhas, declarações de vítimas, reconhecimentos de pessoas e coisas etc, inexistindo ordem previamente estabelecida de produção, exceto no tocante ao interrogatório do imputado. Esse ato deve necessariamente ser o último da fase instrutória. Isso porque, além do seu caráter informativo (ato de investigação), configura meio de defesa no inquérito policial[vii]. Assim, deve ser garantido ao imputado, nos termos de uma “investigação limpa”, o direito à ciência e manifestação a respeito do conteúdo integral da investigação, na certeza de que nenhum outro elemento informativo será produzido ou considerado pelo delegado de polícia em suas conclusões sem prévia oportunidade de manifestação do suspeito.

Essa dimensão específica do “fair play” no jogo investigativo, que visa preservar possíveis, ou melhor, recorrentes esvaziamentos do direito de defesa no inquérito policial pelo chamado “fator surpresa” (elementos informativos ocultos), relaciona-se diretamente com a disciplina do indiciamento no procedimento de apuração preliminar.

O indiciamento, por sua vez, estaria situado numa estrutura complexa e progressiva de juízos negativos de imputação criminosa. Seriam dois os momentos fundamentais de imputação: juízo de possibilidade de autoria e juízo de probabilidade de autoria. O primeiro, materializado por um ato formal de suspeição criminosa, ora denominado nota de ciência investigativa, que tem lugar diante da mera suspeita de autoria. O segundo, realizado por meio da decisão de indiciamento no relatório final do inquérito policial, que indica a conclusão pela autoria provável, na visão do delegado responsável pelas investigações.

Veja que a ciência oficial da condição de suspeito (ou investigado) representa um ato formal demarcatório do lugar do sujeito no procedimento do inquérito policial. Tem como finalidade precípua dar ciência a alguém da condição oficial de investigado (ou suspeito) em relação à determinada notícia crime sob apuração, garantindo-lhe todos os direitos pertinentes, em especial o exercício do direito de defesa nos limites do procedimento investigativo.[viii]

A chamada nota de ciência investigativa (ou cientificação investigativa criminal) objetiva, conforme já dito, (i) dar conhecimento a alguém da existência de uma investigação criminal envolvendo a sua pessoa e (ii) da possibilidade de reação e influência no convencimento do delegado presidente do feito (isto é, da autoridade responsável pela decisão de indiciamento e outros tantos requerimentos cautelares ao juízo competente). Trata-se, no fundo, da garantia do contraditório (mitigado) no inquérito policial e, por conseguinte, do direito de defesa (limitada) no procedimento investigativo preliminar.

Aliás, defesa que poderá ter um viés também propositivo (ativo), e não meramente responsivo (negativo), ao requerer a produção de elementos informativos no bojo do próprio inquérito policial em trâmite ou a juntada do conteúdo informativo angariado por meio de investigação autônoma e paralela (investigação defensiva)[ix]. Não custa lembrar que a defesa não obrigatoriamente existirá desde a instauração do inquérito policial, mas necessariamente desde a indicação oficial de um suspeito (o que, repita-se, pode ocorrer ou não desde o início).

Em tempo, registre-se que o ato de ciência do investigado marca o termo inicial de contagem do prazo para indicação de testemunhas, juntada de documentos e outros requerimentos direcionados à produção de elementos informativos, além de viabilizar a defesa, técnica e pessoal, do investigado que ganha destaque por ocasião do interrogatório[x], cuja data e hora serão designadas nesse ato formal de cientificação.

A Conclusão
Superada a fase instrutória, cujo ato final, repita-se, deve ser necessariamente o interrogatório do imputado, naquelas hipóteses em que oficialmente identificado um suspeito, o delegado de polícia deverá apresentar o relatório final do caso. Trata-se de peça obrigatória composta pelo registro da notícia crime, das diligências investigativas realizadas e dos elementos informativos colhidos, bem como de sua conclusão a respeito da existência (ou não) de indícios suficientes de materialidade e autoria criminosa.

Sublinhe-se que o relatório da autoridade policial não constitui mero índice ou catálogo dos atos praticados ao longo da investigação, mas uma exposição circunstanciada sobre o justo motivo da instauração do inquérito, do cumprimento rigoroso da cadeia de custódia das evidências recolhidas, da origem regular de todos os elementos informativos angariados, da versão apresentada pelo imputado (se houver), bem como da sua valoração indiciária de modo técnico e fundamentado.

Fica claro, portanto, que o lugar ordinariamente consagrado para a decisão fundamentada de indiciamento é o relatório (final) da autoridade policial. Justo porque se trata de uma valoração técnica e jurídica, nos limites cognitivos reservados para a investigação preliminar, conclusiva a respeito daquele caso. Vale lembrar que o indiciamento positivo (ou afirmativo) marca a convicção do delegado de polícia responsável pela presidência do inquérito quanto à provável (e não mais possível) autoria criminosa, do que deve ser novamente cientificado o imputado (agora indiciado)[xi].

Nota Exculpante...
Enfim, essas seriam algumas das ideias centrais ventiladas por este signatário enquanto propostas (iniciais) aos debates de reforma do procedimento do inquérito policial, sempre visando um caráter de maior racionalidade (e democraticidade) do sistema de persecução criminal.

Post scriptum: o presente ensaio reformista representa, de certo modo, uma complementação (não linear) da coluna anterior, intitulada O indiciamento policial não pode ser ato surpresa! Bom feriado!


[i] Cite-se, v.g., GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 09 ed. São Paulo: Saraiva: 2012, p. 103.

[ii] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE, 2001, p. 108.

[iii] BINDER, Alberto M.. La Política Criminal en el Marco de las Políticas Públicas. Bases para el Análisis Político-Criminal. Revista de Estudios de La Justicia. Santiago/Chile: Centro de Estudios de la Justicia de la Facultad de Derecho de la Universidad de Chile, n. 12, 2010, p. 213-229.

[iv] “(...) há de se reconhecer a necessidade de se estabelecer e oficializar um instrumento prévio e anterior ao inquérito policial para as situações que, antes mesmo da abertura de inquérito policial, devem ser melhor avaliadas. Evidente que não é nada razoável que toda e qualquer notícia-crime possa resultar na abertura de inquérito policial. Tal como ocorre com a “notícia de fato criminal” em relação ao Ministério Público (artigo 3, parágrafo quinto, da Resolução 13/2006 do CNMP) como antecedente à abertura de “procedimento de investigação criminal”, precisa-se de algo semelhante aplicável à realidade policial. Tomando o caminho já sinalizado pelo artigo 5º, parágrafo terceiro, do CPP (“esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito) e pelo artigo 2º, parágrafo primeiro, da Lei 12.830/2013 (“outro procedimento previsto em lei”), não é razoável que a autoridade policial apenas disponha do inquérito ou da inoficiosa juntada de papéis e documentos sem número e autuação para a verificação preliminar de informações sobre um fato criminoso” (BERCLAZ, Márcio. É preciso repensar a investigação preliminar criminal no Brasil. São Paulo: Revista Justificando, 2017).

[v] Em que pese a discussão sobre a existência de atos probatórios excepcionais no inquérito policial, o procedimento de investigação preliminar é formado, em regra, por atos de investigação, os quais não devem ser valorados como prova na sentença penal condenatória, e sim como elementos informativos de justa causa para a ação processual penal (além de medidas cautelares, reais ou pessoais, adotadas durante a etapa preliminar).

[vi] O inquérito policial constitui-se em procedimento de instrução preliminar no campo do processo penal, e não um “fim em si”. Logo, a considerar o seu caráter instrumental/preparatório, a cognição deste procedimento apresenta-se como restrita (“não exauriente”), mesmo porque tem por finalidade um juízo de probabilidade, e não de certeza, a respeito da materialidade e da autoria criminal. Nesse sentido, o conhecimento a ser produzido, tanto no plano quantitativo como qualitativo, em níveis horizontal e vertical, deve ser limitado. Cf., por todos, GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; LOPES JÚNIOR, Aury. Investigação Preliminar no Processo Penal. 06 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 169-183.

No tocante à necessidade de reforma do procedimento de investigação, destaca Roxin que “el imputado debería ser informado tan pronto como sea posible de las investigaciones y de los motivos de sospecha que existen en su contra. Tanto el imputado como el defensor deberían tener el derecho a estar presentes en todas las declaraciones realizadas en el procedimiento de investigación. El derecho a examinar los autos del defensor durante el procedimiento de investigación debería ser aumentado. Los requerimientos de investigación del imputado y de su defensor deberían poder ser rechazados, también en el procedimiento preliminar, sólo por determinados motivos que deben estar mencionados en la ley; frente a ello, debería preverse una comprobación ulterior por el juez de la investigación (Schreiber, 1992) (ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. 01 ed. trad. Gabriela E. Córdoba y Daniel R. Pastor. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p. 334)

Toda vez que, durante a fase investigativa criminal, “se descubre que hay un posible responsable, debe comunicárselo inmediatamente para que se pueda defender (...) Se trata de los llamados ‘indicios racionales de criminalidad’ (...) Esa locución, aunque haya sido muy malinterpretada en la práctica, es expresiva de la simple sospecha desde que es atribuible a un sujeto, y que, salvo excepcionales necesidades de secreto de la investigación, tiene que serle comunicada inmediatamente por esa razón” (FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires:EditorialBdeF, 2012, p. 28-29).

[ix] A disciplina da investigação defensiva, inclusive com a possibilidade de incorporação nos autos do inquérito policial, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados. Muito embora não concordemos integralmente com as proposições em discussão, vale registrar que tal situação consta no art. 13 do PL 8045/10.

[x] O interrogatório na fase investigativa constitui propriamente um direito subjetivo do imputado, e não mera discricionariedade da autoridade presidente do inquérito policial. Nesse viés caminha o projeto de novo código de processo penal no Brasil (arts. 12 e 80 a 82 do PL 8045/10).

A ciência do investigado a respeito da decisão, positiva ou negativa, de indiciamento no relatório final do inquérito constitui mais uma forma de controle (e democraticidade) do procedimento de investigação policial, o que pode ser realizado mediante simples notificação por carta ou meio eletrônico ao próprio imputado ou ao seu advogado regularmente constituído.

 é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

Fonte:Conjur.com.br

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