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A questão do aborto e a expectativa da decisão da Suprema Corte dos EUA
25/01/2022

Por José Rogério Cruz e Tucci

 

Há questões jurídicas de inequívoca relevância social, que constituem objeto de preocupação em inúmeros países do mundo civilizado. Entre elas, por razões religiosas, éticas e ideológicas, sobressai a questão do aborto voluntário.

É evidente que essa crucial questão repercute de perto a todos os seguimentos de nossa sociedade. Daí o meu interesse em traçar algumas considerações sobre o "direito ao aborto".

Na experiência comunitária dos Estados Unidos da América, verifica-se que a legalização do aborto voluntário tem sido tema de constante e profundo debate, ora prevalecendo orientação conservadora, ora mais progressista.

Em 1970, duas jovens advogadas americanas, Linda Coffee e Sarah Weddington, foram contratadas para patrocinar os interesses de Jane Roe perante um tribunal no Texas, argumentando que a respectiva gravidez era fruto de abuso sexual. A demanda fora promovida contra o Estado do Texas, representado por Henry Wade, procurador-geral do distrito de Dallas, que se opunha à descriminalização do aborto.

Depois de normal tramitação do processo, sobreveio sentença que reconheceu, na situação concreta, o direito subjetivo de Jane Roe, embora sem alterar a legislação que proibia o aborto.

Por força de sucessivos recursos, a questão alcançou a Suprema Corte dos Estados Unidos. Finalmente, em 1973, por maioria de votos, restou decidido que a mulher grávida, assegurada pelo direito à intimidade — sob a cláusula do devido processo legal previsto na 14ª emenda —, podia escolher por si mesma a continuidade ou não da gravidez. Essa garantia à privacidade foi, então, considerada um direito fundamental sob a proteção da Constituição dos Estados Unidos e, assim, nenhum Estado poderia legislar em sentido contrário. O aborto ficava autorizado, por qualquer razão, até o momento em que o feto se transformasse em "viável", ou seja, potencialmente capaz de viver fora do útero materno, sem ajuda artificial. A viabilidade é atingida por volta dos sete meses (28 semanas), mas pode ocorrer antes, inclusive dentro das 24 semanas iniciais. Depois dessa denominada "fronteira da viabilidade", a Suprema Corte declarou que o aborto deve estar disponível sempre que for necessário para proteger a saúde da mulher.

Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973), tornou-se um precedente histórico (considerado, na verdade, um superprecedent) em matéria de aborto, extraindo-se do acórdão, relatado pelo justice Harry Blackmun, que a maioria das leis contra o aborto nos Estados Unidos violava a aludida garantia constitucional. A orientação da Suprema Corte implicou a alteração ou revogação de todas as leis federais e estaduais que criminalizavam ou restringiam o aborto (consulte-se, sobre o tema, Geoffrey R. Stone, Roe v. Wade: Past, Present, and Future, Harvard Law & Policy Review, março de 2018).

A despeito da enorme polêmica sobre Roe v. Wade, que marcou a sociedade dos Estados Unidos nestes últimos 50 anos, estima-se que, com a nova configuração conservadora dos membros integrantes da Suprema Corte, o famoso precedente está com os seus dias contados. Poderá, com efeito, ser superado (overruling), ainda que parcialmente, em meados de 2022, ao ensejo do julgamento pela Suprema Corte do caso Dobbs v. Jackson. Na hipótese de ser reconhecida a procedência do pleito, o resultado propiciará aos Estados que voltem a criminalizar o aborto.

Como informa a jornalista Julie Rovner, em artigo recentemente escrito no periódico Kaiser Health News (19/1), intitulado "Americans are divided on abortion. The Supreme Court may not wait for minds to change", manifestantes se reuniram em frente à Suprema Corte enquanto os justices ouviam argumentos em Dobbs v. Jackson Women's Health, um caso sobre uma lei do Mississippi, de 1º de dezembro de 2021, que proíbe a maioria dos abortos após 15 semanas. Especialistas acreditam que uma decisão sobre este caso poderia revogar ou reduzir a amplitude da decisão proferida em Roe v. Wade.

Quando estava concorrendo à presidência em 1999, lembra a articulista, George W. Bush, então governador do Texas, notoriamente rechaçou a forte ala antiaborto de seu partido ao sugerir que o país não deveria considerar a proibição do aborto até que a opinião pública mudasse ainda mais nessa direção. "As leis são alteradas à medida que as mentes são persuadidas", ressaltou ele.

Bush, no entanto, não era moderado na questão do aborto. Como presidente, ele assinou várias leis antiaborto, incluindo a primeira proibição federal de um procedimento específico de aborto e, ainda, valeu-se de sua autoridade para deliberadamente limitar pesquisas financiadas pelo governo federal sobre células-tronco embrionárias.

O presidente Bush, a propósito, foi muito claro ao sugerir aos aliados antiaborto que envidassem esforços a conquistar mais americanos a lutarem por esse ideal antes de pressionar os políticos por restrições mais amplas.

Na atualidade, ativistas conservadores antecipam o que poderia ser o "último aniversário" da histórica orientação da Suprema Corte.

Por muitos anos, as forças antiaborto concentraram sua luta em providências mais específicas, como, por exemplo, impor exigências onerosas de saúde e segurança às clínicas de aborto e estabelecer períodos de reflexão antes do aborto.

Tudo leva a crer que essa estratégia está muito próxima de ser testada. Embora, de um modo geral, a opinião pública sobre o aborto tenha mudado pouco nestas duas últimas décadas e a sociedade norte-americana ainda esteja francamente dividida, a Suprema Corte parece madura o suficiente para revogar ou pelo menos minimizar significativamente a extensão do histórico precedente.

Nesse primeiro semestre, se tudo correr como se espera, os justices decidirão no mencionado caso do Mississipi se a proibição do aborto antes da viabilidade fetal pode ou não ser constitucional. Durante a exposição dos respectivos argumentos, ocorrida em dezembro último, a maioria dos ministros da nova maioria conservadora da Suprema Corte tendia a questionar o fundamento constitucional de Roe v. Wade, que garante a liberdade de aborto em todo o país.

Se a maioria julgar favoravelmente, permitindo a proibição imposta pelo Mississipi, no sentido de criminalizar o aborto com 15 semanas de gravidez, será então alterada a orientação que prevalece há 50 anos.

Escreve ainda Julie Rovner que, no Texas, todos, exceto os abortos realizados nos estágios iniciais da gravidez, estão inacessíveis desde setembro passado devido a um impasse jurídico sobre uma lei estadual que proíbe o aborto após seis semanas, mas que curiosamente delega à sociedade reprimir a opção feita pela gestante, admitindo ações civis contra qualquer pessoa que realize um aborto ou ajude a realizá-lo. Tenha-se presente que a Suprema Corte pela terceira vez permite que o Texas proíba abortos após seis semanas.

Recentemente, Bhavik Kumar, médico de aborto de San Antonio, afirmou ser expressivo o fato de que a Suprema Corte se recusou a cassar, no mês de dezembro passado, a nova lei do Texas, a demonstrar que se deve reputá-la vigente, no sentido de que o aborto é ilegal "a partir do décimo dia após a falta de menstruação para algumas mulheres".

Defensores do direito ao aborto proclamam que a discussão pública sobre a questão se caracterizou por absoluta falta de transparência há muito tempo. "Tivemos uma campanha de uma década de desinformação e desinformação", lembrou o dr. Kumar. "Quando as pessoas entendem a realidade, quando entendem a ciência", disse ele, "há uma profunda diferença na opinião deles".

É aí que entra o relevante estudo Turnaway. Constitui ele uma pesquisa comportamental de dez anos de quase mil mulheres em 30 clínicas especializadas que fizeram abortos ou foram "rejeitadas" porque estavam muito adiantadas em suas respectivas gestações. "Estávamos interessados em responder à pergunta 'o aborto prejudica as mulheres?'", frisou Diana Greene Foster, a pesquisadora principal do estudo e autora do livro "The Turnaway Study: Ten Years, a Thousand Women, and the Consequences of Being — Or Being Denied — An Abortion". Inimigos do aborto há anos alegam que o aborto prejudica a saúde mental das mulheres e também causa problemas físicos.

Os dados do Turnaway Study resultaram na publicação de mais de 50 estudos revisados por especialistas e a resposta para quase todas as perguntas feitas, explicou Foster, é que as mulheres que fizeram abortos se saíram melhor em relação à economia e à saúde, incluindo seus filhos, em comparação com aquelas que não fizeram abortos: "Vemos grandes diferenças imediatas no bem-estar econômico, sendo certo que as mulheres a quem foi negado o aborto são mais propensas a serem pobres, menos propensas a serem empregadas, mais propensas a dizer que não têm dinheiro suficiente para as necessidades básicas de vida".

A questão, como se observa, é revestida de inúmeros aspectos complexos, que agitam a sociedade americana, a demandar análise meticulosa e ponderada, para que se chegue, em futuro próximo, a um desfecho que realmente possa definir com sabedoria o crucial binômio liberdade, de um lado, e direito à vida, de outro.

 Fonte: Conjur.com.br