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Foi recentemente publicado o novo regramento para a homologação do acordo de colaboração premiada (artigo 4º, § 7º, I até IV da Lei 12.850/13 alterada pela Lei 13.964/19). A lei disciplinou que o juiz homologador analisará o (a) termo de avença, (b) as declarações da parte e a (c) cópia da investigação, impondo um dever de (d) oitiva sigilosa do colaborador, acompanhado de seu defensor. O juiz analisará os aspectos legais para a homologação, (e) como a “regularidade” e a “legalidade” (inciso I), (f) a “adequação dos benefícios” pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º do artigo 4º.[1] O legislador consignou que são (g) “nulas” as cláusulas que violarem a definição do regime inicial de “cumprimento de pena” previsto no artigo 33 do Código Penal, as regras de cada um dos regimes prisionais e, ainda, os requisitos para progressão não abrangidos pelo §5º do artigo 4º (inciso II). De igual modo, a lei exigiu (h) adequação da colaboração premiada aos resultados mínimos editados nos incisos I, II, III, IV, e V do caput do artigo 4º, §7º (inciso III). Por último, a lei manteve a necessidade do (i) exame da “voluntariedade” — com a advertência, “especialmente nos casos onde o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares” (inciso IV).
Sanção premial e legalidade
É conhecida a crítica no sentido de que muitos dos benefícios acordados não têm previsão legal — por exemplo, as sanções premiais cumpridas em “regimes diferenciados”[2]. Se a intenção foi estabelecer balizas legais mais claras que a dos últimos anos para a colaboração premiada, o legislador fracassou. O Poder Legislativo produziu uma miscelânea conceitual entre “pena” e “sanção premial”, prestando um novo desserviço. É cediço que, por se tratar de justiça consensual, as sanções premiais passam por um longo processo negocial, desde o oferecimento da proposta pela autoridade celebrante até a sua aceitação pelo colaborador e seu advogado, sendo o negócio jurídico processual posteriormente homologado pelo juiz, uma vez analisados os aspectos legais.
A novidade é que o legislador tentou vincular a forma de cumprimento da “sanção premial” à “pena criminal” de reclusão ou detenção, que deve obviamente ser cumprida dentro dos regimes legais e de forma progressiva (fechado, semiaberto ou aberto): “[...] II – adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do artigo 33 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo.[...]”
Confusão conceitual — “pena criminal” e “sanção premial”
O texto é fruto de má técnica legislativa, pois não há precisa distinção entre a “pena” aplicada em sentença pelo juiz após o acordo de colaboração premiada e a “sanção premial”, previamente acordada pelo colaborador com o Ministério Público e homologada pelo juiz. O instituto da colaboração premiada segue carente da construção de uma teoria geral[3] própria, ainda não expressa no ordenamento jurídico. A questão é fundamental e passa pelo estabelecimento de princípios reitores e, sobretudo, por traçar as diferenças entre a “pena criminal” e “sanção premial”, bem como cada qual repercute em sede de execução.
É certo que o instituto é novo, mas já vivemos duas experiências de dimensões diferentes em sede de soluções penais negociadas no Brasil: (a) a justiça negocial de primeira dimensão, no caso das infrações de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) e (b) a justiça negocial de segunda dimensão, com as infrações de maior complexidade (Lei 12.850/13, agora reformada pela Lei 13.964/19)[4]. Diante da primeira experiência, era previsível que o fracasso da justiça negocial nas infrações de menor potencial refletisse na hipótese de infrações de maior complexidade, como é o caso dos crimes por organizações criminosas.
A justiça negocial de segunda dimensão, objeto do pacote anticrime, seguirá convivendo com os dois modelos de acordos de colaboração premiada, ambos aceitos pelo Supremo Tribunal Federal. A lei não resolveu o dilema da convivência dos dois modelos de acordo de colaboração premiada aceitos no Brasil. Há hipótese de acordo em que a (a) sanção premial é fechada, ou seja, a “sanção premial” é acertada entre o Ministério Público e o colaborador da Justiça quando do contrato e, depois, o clausulado é homologado pelo juiz. E, outra, quando a (b) sanção premial é aberta, a sanção é definida pelo juízo por oportunidade da sentença condenatória, nos termos legais.
Disto resulta que, quando não for o caso de “perdão” judicial, a determinação de eventual “pena criminal” a partir da colaboração premiada deve seguir os critérios legais. Isto não se confunde, contudo, com a fixação da “sanção premial” que, por sua dimensão e propósito, segue sendo passível de aplicação de forma “diferenciada”. Aliás, não há espaço para ingenuidades, tal diferenciação é justamente o atrativo para que o pretenso colaborador formalize o contrato, sobretudo diante da caótica situação do sistema prisional e da possibilidade de monetização da “sanção premial” —especialmente quando o acordo de colaboração premiada da pessoa física vem acompanhado de simultâneo acordo de leniência do ente coletivo.
Indiscutivelmente, a adoção da justiça penal consensual no Brasil é necessária. Para tanto, o enfrentamento do tema exige uma profunda reflexão sobre a os elementos da “culpabilidade” e da “punibilidade” no direito penal tradicional. Impõe-se, quiçá, a criação de um específico modelo de direito penal premial. Resumidamente, “pena criminal” é fixada em sentença condenatória a partir dos critérios clássicos de dosimetria estabelecidos pelo Código Penal – quanto maior o juízo de censura que recai sobre a conduta do agente, maior deve ser a resposta penal. “Sanção premial” é discutida e acertada pelas partes celebrantes do acordo de colaboração e pode adotar os critérios legais previstos para a “pena criminal” ou, ainda, outros vetores “diferenciados”, justamente por não se tratar de “pena criminal”, mas de “sanção premial”. Precisamente pelo caráter de sanção premial, não é aplicável a lógica de que a punição será maior tanto maior seja o juízo de censura que recai sobre a conduta do agente. No terreno do consenso, o que importa é a efetividade da contribuição do agente colaborador – que, de boa-fé, confessa a prática de ilícitos, repara os danos ex delicto, traz informações úteis a partir do conteúdo material de suas declarações e de dados de corroboração, os quais são avaliados a partir da relevância utilidade e do interesse público para o Estado.
De fato, o acordo pode estabelecer que a “sanção premial” seja cumprida em forma de “pena criminal”, com as reduções fixadas em sentença condenatória, conforme a efetividade da colaboração premiada – chamado acordo de colaboração com sanção premial aberta. Quando o acordo estabelecer que a “sanção premial” será cumprida no formato de “pena criminal” de reclusão ou detenção, então, há exigência no cumprimento da forma e da progressividade, nos moldes do Código Penal e da Lei de Execução Penal.[5] A lei é expressa ao autorizar o juiz, a requerimento das partes, conceder o perdão, reduzir em até 2/3 a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado com a Justiça, desde que efetivamente cumpra um ou mais dos requisitos legais (previstos no artigo 4º, I até V).
“Sanção premial diferenciada” — opinião
Ao que se transparece, a alteração (artigo 4º, §7º, II) pretendeu impossibilitar a estipulação das cognominadas “sanções premiais diferenciadas”. Todavia, a redação do dispositivo não é suficientemente clara ao estabelecer que o juiz, em sede de homologação do acordo, deve operar a “adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º”, ainda que que tenha sublinhado que são “nulas” as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena, as regras dos regimes prisionais e os requisitos de progressão. A referência legal é genérica e não estabelece distinção entre “pena criminal” e “sanção premial”, dando margem ao processo de ampla interpretação, no sentido de que serão nulos aqueles benefícios que não respeitarem as regras de regime inicial de cumprimento de pena, bem como aqueles contrários às regras próprias de cada regime, por exemplo.
Se a idealização do texto era a proibição expressa do recurso à “sanção premial diferenciada” nos acordos de colaboração, o legislador perdeu a oportunidade de ser efetivamente objetivo. Diante da vagueza do dispositivo e da omissão sobre eventual vedação, o processo de hermenêutica está a merecer fundamentação, essencialmente a partir de uma visão racional no escopo último do instituto da colaboração premiada – uma avença entre o colaborador de boa-fé, que pretende reparar os danos e retornar para a zona de legalidade e o titular da ação penal, representante do Estado.
Pode-se argumentar que não há sentido em delegar ao juiz um controle somente na fase de homologação do acordo, impondo um ajuste nos “benefícios” quando estes forem avençados em formato de “pena”. Ocorre que a lei é omissa no que tange à vedação de eventual “sanção premial” fora do formato de “pena criminal”. Parece anacrônico o juiz ter de interceder para ajustar os benefícios quando estes seguirem um formato de “pena” estabelecida em lei e não no caso de “sanção premial”, que ainda não recebeu um regramento jurídico específico.
Ao não vedar o uso de “sanção premial diferenciada” – que tem sido aceita nas colaborações premiadas homologadas pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive nos chamados “acordos globais” ou de “dimensões transnacionais”, como no caso do precedente “Odebrecht”, no âmbito da “Operação Lava Jato” – o que a observação legal indica é que o artigo 33 do Código Penal deve funcionar como um limite em relação ao que está disciplinado sobre “pena criminal”, bem como a forma de seu cumprimento. Em verdade, a lei criou uma garantia: a “sanção premial” não pode ultrapassar o limite legal imposto à “pena”. As regras do Código Penal e Lei de Execução Penal representam um máximo de resposta penal no Estado, e não o mínimo.
A lei não proibiu a possibilidade de que a “sanção premial” seja estabelecida de forma “diferenciada”, fora do formato legal de “pena criminal” de reclusão ou detenção, diminuída ou perdoada. Os patamares de “pena”, quando utilizados em forma de “sanção premial”, devem ser fixados consoante previsão do artigo 33 do Código Penal, assim como os regimes prisionais e a determinação do regime inicial de cumprimento da “pena” observarão os critérios previstos no artigo 59 do mesmo diploma. Entretanto, o regime jurídico estatuído no Código Penal estabelece regras de cumprimento de “pena” que devem ser adotadas quando a “sanção premial” for cumprida nesse formato e, por suposto, em estabelecimento prisional. Em meu juízo, as regras não são aplicáveis aos casos de “sanção premial diferenciada”, estabelecida em acordo pelas partes e homologada pelo juiz, o que vem sendo referendado pelos Tribunais e não foi expressamente vedado pelo legislador.
Então, se ao juiz é autorizado a concretização máxima do benefício do “perdão” da “pena” e a lei não veda outras formas de “sanção premial”, não vejo empecilho para o estabelecimento de avenças com “sanções premiais diferenciadas”, que não seguem a dosimetria estabelecida com fulcro nas circunstancias judiciais do artigo 59 do Código Penal, mas sim o parâmetro previsto no artigo 4º, §1º, pois a “concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração”.
Conclusão
O tema merecerá o acurado exame da doutrina e será sedimentado na jurisprudência ao longo do tempo. Ao passo em que a nova legislação consagra — mais uma vez — a justiça negocial no Brasil, o texto trazido à baila não resolve os graves problemas[6] relativos ao ainda novo instituto jurídico da colaboração premiada. A figura precisa ser decantada para que receba a funcionalidade adequada, fundamentalmente dentro de um sistema de garantias estabelecido a partir de criteriosa segurança jurídica, que, sobretudo, proteja o jurisdicionado.
[1] Verbis: “[...] § 4º Nas mesmas hipóteses do caput , o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I - não for o líder da organização criminosa; II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. § 5º Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.”
[2] Por todos: CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. “Colaboração premiada: reflexões críticas sobre os acordos fundantes da Operação Lava-Jato”. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 133, jul. 2017, pp. 133-171.
[3] Vale conferir a contribuição para a construção da teoria geral da colaboração premiada no Brasil: REALE JÚNIOR, Miguel. “Colaboração premiada: natureza, dilemas éticos e consequências”. In: BENETTI, Giovana; CORREA, André R.; FERNANDES, Marcia; NITSCHKE, Guilherme; PARGENDLER, Mariana; VARELA, Laura Beck (orgs.), Direito, cultura, método: leituras da obra de Judith Martins-Costa, Rio de Janeiro: GZ, 2019.
[4] REALE JÚNIOR, Miguel; WUNDERLICH, Alexandre. “Justiça negocial e o vazio do Projeto Anticrime”. In: Boletim IBCCRIM, n. 318, maio 2019, pp.06-08.
[5] Nos estabelecimentos prisionais previstos – regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média, regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.
[6] Os problemas foram pontuados em WUNDERLICH, Alexandre; RASSI, João Daniel; TAFFARELLO, Rogério Fernando. Doze perguntas sobre colaboração premiada: em busca de segurança jurídica. Portal Jota, 10 nov. 2017. Disponível em: https://www.jota.info/.
Fonte:Conjur.com.br