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A alteração promovida pelo "pacote anticrime" na ação penal por estelionato
08/01/2020

 

Por Lucas Neuhauser Magalhães*

 

A Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que passará a vigorar a partir de 23 de janeiro de 2020, traz inúmeras e significativas alterações no sistema processual penal.

Antes mesmo de a referida legislação passar a vigorar, já podemos nos debruçar sobre questões sensíveis e de múltiplas interpretações, antecipando eventuais teses que podem surgir com o advento do novo estatuto.

Visando ao devido aprofundamento que o tema merece, nos debruçaremos de forma mais específica sobre um ponto específico dessa reforma, qual seja, a alteração referente à natureza da ação do crime de estelionato.

Como é cediço, existem em nosso ordenamento duas espécies de ações penais — públicas e privadas. A ação penal de iniciativa pública se divide em incondicionada e condicionada, enquanto a ação penal de iniciativa privada poderá ser personalíssima ou subsidiária da pública.

O estelionato sempre teve ação de natureza pública incondicionada. Isto é, a autoridade policial deveria instaurar o inquérito policial de ofício, e o membro do Ministério Público independia da vontade da vítima para oferecer a denúncia contra o autor.

Ocorre que o crime de estelionato, em regra, é de difícil elucidação. O rastreamento da coisa subtraída geralmente é dificultado por sucessivas simulações e pelo desconhecimento da própria vítima sobre o autor. Assim, não raras vezes os cartórios das unidades policiais espalhadas por todo o país ficam assoberbados de procedimentos desta natureza, cuja instauração era compulsória. Assim, a investigação por vezes não era realizada a contento, geralmente pelo próprio excesso de serviço diante das condições humanas e materiais ofertadas às policias judiciárias estaduais.

Ciente desta situação, o legislador, a nosso ver acertadamente, acrescentou o parágrafo 5º ao artigo 171 do Código Penal, tornando a ação do crime de estelionato pública condicionada à representação (com exceções). Assim, não basta que a vítima comunique o fato criminoso à autoridade policial, sendo agora necessário, em regra, formalizar sua vontade de que o Estado persiga o autor de referido delito.

Muitos podem pensar que tal mudança não foi de grande importância prática, afinal, se o cidadão está procurando o órgão policial para comunicar o fato criminoso, certamente tem interesse em sua investigação.

No entanto, muitas vezes não é o que ocorre. Frequentemente instituições financeiras, grandes conglomerados empresariais e processadores de pagamento estão indiretamente ligados aos estelionatos perpetrados, exigindo então que seus clientes registrem os fatos perante a autoridade policial para formalização de uma investigação interna ou simples controle em sede de compliance. Assim, diversas vezes vítimas registram boletins de ocorrência desejando apenas ser ressarcidas por essas empresas de seus prejuízos ou evitar maiores danos econômicos, não desejando ser envolvidas em eventual investigação criminal, receber intimações para prestar declarações na delegacia de polícia ou perante o Poder Judiciário. Dessa maneira, fica claro que a comunicação do fato criminoso através do registro do boletim de ocorrência não se confunde com o desejo e a vontade de oferecer representação criminal.

Esclarecidos os fatos preliminares, devemos questionar um ponto de fundamental importância: considerando que o crime de estelionato era de ação penal pública incondicionada e que passou a ser de ação penal pública condicionada à representação, o que ocorre com os inquéritos já instaurados e processos em andamento que versam sobre tais delitos? A representação será necessária? A vítima deverá comparecer aos autos para ratificar seu desejo de ver o autor processado? E caso não deseje representar, qual será a conseqüência para o procedimento em andamento?

Analisando historicamente, podemos observar que fato análogo ocorreu com a promulgação da Lei 9.099/1995, que dispôs em seu artigo 88 que a ações penais relativas aos crimes de lesões corporais leves e culposas passariam a depender de representação. Ocorre que, nesta ocasião, o artigo 91 daquele estatuto previu expressamente a conseqüência para os casos em andamento: “Nos casos em que esta lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.”

Infelizmente o “pacote anticrime”, como vem sendo chamada a Lei 13.964/2019, não determinou de maneira expressa o que ocorre com os casos de estelionato em andamento, cabendo aos operadores da ciência jurídica analisar tal questão sob a égide principiológica.

Ao serem instaurados os inquéritos policiais e processos judiciais perante o ordenamento que antecedeu a Lei 13.964/2019, o crime de estelionato não dependia da vontade da vítima e do oferecimento de representação. Assim, é possível defender que, como a representação não era necessária naquele tempo, o início do procedimento de ofício retratou ato jurídico perfeito e acabado, não havendo que se falar em necessidade de oferecimento de representação para os procedimentos instaurados anteriormente à entrada em vigor da debatida alteração. Reforça este ponto de vista a argumentação de alguns estudiosos que afirmam que a representação é instituto de Direito Processual Penal e, portanto, não deve retroagir.

Entretanto, não é a posição que deve prevalecer, a nosso ver. Respeitada a posição em contrário, entendemos que a representação é um instituto que pode interferir de maneira tão perturbadora na vida de um indivíduo que não pode ser considerado meramente processual, afinal, poderá ser o divisor entre ver-se processado ou não. A alteração promovida pela Lei 13.964/2019, neste ponto, é de indubitável natureza penal material ou ao menos de natureza mista e, portanto, deve retroagir para beneficiar o investigado/réu. Trata-se de uma exigência mais gravosa que o ordenamento jurídico pátrio passa a exigir para a instauração de investigação ou oferecimento de denúncia pelo crime de estelionato. Assim, o cidadão atingido por esta lei deve ser protegido, e a formalização de eventual representação pretendida pela vítima deve ser efetivada.

Sem embargo, cumpre observar que o artigo 564, III, “a”, do Código de Processo Penal, é de clareza solar ao dispor que a ausência de representação gera nulidade, por ser formalidade indispensável ao ato. Referido dispositivo não apresenta qualquer exceção no caso de o procedimento ter sido instaurado quando a representação não era necessária.

Como é notório e pacífico perante a doutrina penalista, a representação é condição de procedibilidade nos casos de crimes com ação penal pública condicionada. Caso o delito já esteja sendo apurado ou processado quando a representação passa a ser exigida, sua natureza jurídica será de condição de prosseguibilidade. Logo, as vítimas dos inquéritos e processos em curso devem ser intimadas a se manifestar sobre a representação.

Ausente a manifestação, ocorrerá a decadência do direito de representação em 30 dias, adotando por analogia o prazo concedido pelo artigo 91 da Lei 9.099/1995. Já no caso de a vítima informar expressamente que não deseja representar, haverá a renúncia explícita ao direito de representação, seja por analogia ao artigo 107, V, do Código Penal, seja porque o rol de possibilidades de extinção da punibilidade não é exaustivo.

Fonte:Conjur.com.br

* é delegado de Polícia Civil em Santa Catarina, ex-delegado de Polícia Civil em São Paulo, bacharel em Direito e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.