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Até 25 de dezembro de 2019, o artigo 122, do Código Penal, criminalizava o ato de induzir, instigar ou auxiliar alguém a suicidar-se. O preceito secundário cominava pena de reclusão de dois a seis anos, se o suicídio de consumasse, ou de um a três anos, se da tentativa do suicídio resultasse lesão corporal de natureza grave. Ainda, seu parágrafo único previa a duplicação da pena caso o crime fosse praticado por motivo egoístico ou se a vítima fosse menor ou tivesse diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.
A partir deste tipo penal, a doutrina brasileira majoritária[1] afirmava que a vida era um bem indisponível e o suicídio um ato ilícito — vide o artigo 146, §3º, do Código Penal, que excetua da prática de constrangimento ilegal aquele que se valer de coação para impedir um suicídio —, não obstante atípico — o que era justificado por razões puramente pragmáticas, correspondentes à ineficácia da função preventiva da pena em face de um suicida, e humanitárias, condizentes com a perversidade de submeter à pena um suicida malsucedido.
De início, cabe frisar que o suicídio não é alvo de sanção penal, não por meras questões pragmáticas relacionadas à teoria da pena, mas simplesmente pelo fato de que não é um ato ilícito. E não o é porque os princípios do dano e da ofensa esgotam “a categoria de razões moralmente relevantes para proibições penais. Considerações paternalistas e moralistas [...] não possuem peso algum”[2], razão pela qual imoralidades, autolesões e heterolesões consentidas não são suficientes à sustentar um tipo penal.
O crime de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146, do Código Penal, estabelece, por um lado, que constranger alguém a não fazer o que a lei permite é proibido, e, por outro, que todo cidadão está autorizado a exigir de outrem que não faça o que a lei proíbe. Encontra-se implícito, portanto, que comportamentos ilícitos podem ser impedidos.
Caso o suicídio fosse ilícito, por qual razão o legislador precisaria prever expressamente que a coação exercida para impedi-lo não configura constrangimento ilegal, uma vez que o próprio tipo penal não veda que se impeçam condutas ilícitas? Distintamente do que sustenta a maioria da doutrina brasileira, a exceção é necessária precisamente por ser o suicídio um ato lícito, de modo que, não fosse o artigo 146, §3º, do Código Penal, aquele que evitasse um suicídio estaria praticando constrangimento ilegal.
Ao prever que “a coação exercida para impedir suicídio” não se enquadra como constrangimento ilegal, o legislador está, justamente, autorizando que alguém coíba momentaneamente o suicida (que não pratica ilícito algum, uma vez que pratica ato autorreferente, direcionado à lesão de bem jurídico individual de sua titularidade), em razão do perigo abstrato de que sua decisão não seja suficientemente madura e refletida e, ao fim e ao cabo, culmine em graves autolesões involuntárias. Não fosse assim, todo comportamento proibido deveria estar elencado no artigo 146, §3º, do Código Penal, o que representaria uma técnica legislativa ociosa e desnecessária.
O leitor deve estar se perguntando por que motivo, então, alguém seriar penalmente castigado a título de colaboração em um suicídio?
A resposta está no fato de que, ao contrário do que a doutrina majoritária sustentava, o auxílio ou indução ao suicídio não constituía crime material, muito menos de dano, mas sempre foi um crime formal e de perigo abstrato.
O que não se admite é o risco de que uma conduta precipitada ou sujeita a alterações psíquicas possa causar danos irreparáveis[3]. Busca-se proteger a vida de uma decisão potencialmente inválida, capaz de acarretar consequências drásticas e irreparáveis ao titular do bem jurídico.
O âmbito de punibilidade da conduta era circunscrito por condições objetivas de punibilidade[4] e suas modalidades qualificadas refletiam, por um lado, um maior desvalor de ação, em virtude dos motivos egoísticos do autor, e, por outro, o perigo concreto que surgia quando o crime era praticado contra vítima menor ou que tivesse diminuída sua capacidade de resistência.
Condições objetivas de punibilidade são “circunstâncias que se encontram fora do tipo de injusto e da culpabilidade, mas de cuja existência depende a punibilidade do fato e a possibilidade de participação”[5]. Podem ser próprias — remetendo apenas à necessidade político-criminal da pena, com vistas a restringir a categoria da punibilidade[6] — ou impróprias — operando como “causas encobertas de agravação da pena”[7], fundamentando a sanção imposta e ampliando a punibilidade à revelia da imputação subjetiva[8], o que suscita incompatibilidades com o princípio da culpabilidade.
No delito de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, a periculosidade abstrata devia “ficar demonstrada pelo resultado para poder ser suficientemente ‘anômala’ a efeitos de uma reação penal”[9]. Buscava-se, por um lado, evitar a desproporcionalidade de penalizar amplamente condutas abstratamente perigosas que, não obstante formalmente típica, materialmente não perturbassem de maneira insuportável o tecido social; e, por outro, impedir que uma espécie de comportamento comumente perigoso somente pudesse ser sancionada nos casos em que houvesse dano ou perigo concreto.
O tipo penal em comento mantinha a redação original que lhe havia sido dada em dezembro 1940, quando da entrada em vigor do Decreto-Lei 2.848. Eis que em 26 de dezembro de 2019, entrou em vigor a Lei 13.968/2019, que reformou o tipo penal em comento, buscando modernizá-lo, ampliando seu âmbito de incidência e alterando algumas de suas características principais.
Com a nova lei, passou a ser crime induzir, instigar ou prestar auxílio material para que outrem se automutile. O preceito secundário comina pena de reclusão de seis meses a dois anos — não condicionada à superveniência de qualquer condição de punibilidade. Se da automutilação ou da tentativa de suicídio resultar lesão corporal grave ou gravíssima, a pena será de um a três anos de reclusão (artigo 122, §1º, CP), aumentando para dois a seis anos caso o suicídio se consume ou a autolesão resulte em morte (artigo 122, §2º, CP).
Primeiramente, deve-se atentar ao vocábulo automutilação. Mutilar significa cortar ou danificar algo. Automutila-se, nesse sentido, aquele que corta ou lacera partes do próprio corpo, podendo ou não chegar a amputá-las.
A nova lei dificulta o intento daqueles que defendiam a vida como um bem jurídico indisponível. Caso deseje manter esse entendimento, parte da doutrina terá de sustentar, igualmente, a indisponibilidade da integridade física, ou, ao menos, restringir sua disposição. Os fundamentos para isso, possivelmente, seriam buscados na frequentemente esquecida cláusula dos bons costumes, prevista no artigo 13, do Código Civil. Esse dispositivo, entretanto, não encontra correspondente no Direito Penal, razão pela qual, em virtude dos princípios da legalidade e da ofensividade (que exige a alteridade e discordância da lesão), bem como do caráter indeterminado e paternalista — senão moralista — que lhe subjaz, não deve ser aplicado no âmbito criminal [10].
Os motivos subjacentes ao delito não guardam relação com a suposta indisponibilidade da vida ou da integridade física. A cominação de pena incondicionada àquele que praticar a conduta descrita no caput evidencia que o crime em exame é (e sempre foi) de perigo abstrato. Seu objetivo é evitar que atos suicidas ou autolesivos involuntários sejam impulsionados por terceiros. No entanto, o perigo concernente à cooperação em um comportamento suicida não necessariamente estará presente nas hipóteses de automutilação.
Suicídio e autolesões não configuram ilícitos. Desse modo, estando o sujeito consciente e voluntariamente decidido a praticar tais condutas, eventuais colaboradores não poderiam ser sancionadas a qualquer título. Quanto ao suicídio, a justificativa para excetuar o raciocínio acima é tentar proteger a vida de uma decisão potencialmente inválida, capaz de acarretar consequências drásticas e irreparáveis. O mesmo nível de precaução, entretanto, não parece ser adequado no que diz respeito às automutilações.
Autolesões deliberadas são mais comuns do que condutas suicidas, sendo várias delas, inclusive, socialmente adequadas, integrando práticas sexuais sadomasoquistas, vídeos de humor (Jackass; LaFênix), exposições artísticas (como a do performático Sterlac, que realizava apresentações em que ficava suspenso por ganchos de metal fixados em sua pele), cirurgias estéticas de modificação corporal (homem-lagarto; homem-gato), entre outros. Para além de gerarem menoscabos aquém da morte, suas execuções não costumam estar associadas, na mesma medida que o suicídio, a transtornos psicológicos incapacitantes. Noutros termos, o risco de que a pessoa que se automutila não esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais e, assim, prejudique-se involuntariamente, é inferior ao risco de que um suicida o faça.
As alterações promovidas pelo legislador intensificaram o controle sobre as práticas de colaboração com lesões autorreferentes, não somente por incriminarem amplamente auxílios à automutilação, mas também por converterem as antigas condições objetivas de punibilidade em qualificadoras.
Ainda que a pena seja a mesma para os resultados lesão corporal grave e morte, esses passaram a qualificar o delito. Enquanto na lei anterior a prática da conduta descrita no caput, por si só, configurava o crime, mas não autorizava a punibilidade — condicionada aos eventos descritos no preceito secundário —, hoje o resultado somente agrava a situação anterior, pois o autor já estará sujeito à pena pela mera criação do perigo abstrato.
Note-se que não há como qualificar as previsões dos §§ 1º e 2º como condições objetivas de punibilidade, uma vez que, conforme já tratado, seria uma condição imprópria e conflitaria com o princípio da culpabilidade. Assim, para que agravem a pena, tais resultados deverão ser causados ao menos culposamente (artigo 19, CP).
Ao lado da motivação egoística, o legislador acresceu os motivos torpe ou fútil (artigo 122, §3º, inciso I, CP) e manteve a vítima menor ou com capacidade de resistência diminuída (artigo 122, §3º, inciso II, CP) como causas de duplicação da pena. Os fundamentos versam, respectivamente, ao maior desvalor de ação atribuído aos motivos citados e ao perigo concreto de incapacidade da vítima.
O magistrado poderá elevar a pena até o dobro se a conduta tiver sido realizada “por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real” (artigo 122, §4º, CP). O legislador buscou responder aos jogos (como Baleia Azul) e grupos em redes sociais que levam ao suicídio e/ou automutilações, principalmente por parte de crianças e adolescentes.
O simples fato de a conduta típica ser praticada por meio virtual não justifica, porém, a majoração da pena. Essa poderá ocorrer somente quando a mensagem de incentivo à autolesão for amplamente veiculada na rede, para milhares de usuários. Aqui, o bem jurídico tutelado adquire característica individual homogênea, já que inúmeras vítimas indeterminadas são expostas ao perigo, o que demandaria uma sanção mais severa.
Se o autor for líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual, a pena será aumentada em metade (artigo 122, §5º, CP). O dispositivo presume que, ao ocupar uma posição de liderança, o sujeito possuiria maior influência sobre o comportamento dos membros do grupo administrado, razão pela qual o crime dirigido a integrantes subalternos reclamaria maior grau de reprovação.
Por fim, os §§ 6º e 7º, positivaram, respectivamente, as hipóteses de lesão corporal e homicídio por autoria mediata, praticados através da instrumentalização da vontade da vítima contra si mesma. Os parâmetros utilizados pelo legislador já ecoavam na doutrina desde antes da nova lei[11].
À diferença da qualificadora do §3º, inciso II, os §§ 6º e 7º mencionam hipóteses em que já não há perigo concreto, mas certeza quanto à incapacidade e, assim, quanto à inexistência de autorresponsabilidade da vítima, que vem a ser instrumentalizada pelo autor do delito.
1 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratando de direito penal: parte especial, volume 2. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 94; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: 2008, p. 226-227; DELMANTO, Celso. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 232; ESTEFAM, André. Direito penal, volume 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 125; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, parte especial: volume I – arts. 121 a 212 do CP. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 70; GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. Niterói: Impetus, 2018, p. 95; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. IX, Arts. 250 a 361. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 227-228; JESUS, Damásio de. Direito penal: parte especial, v. 2: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 100; MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 53; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2001, p. 82; NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal – parte geral – parte especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 618; PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito Penal, parte especial, v. 2: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Método, 2008, p. 197-198; TELES, Ney Moura. Direito penal: parte especial: arts. 121 a 212, volume 2. São Paulo: Atlas, 2004, p. 155.
2 FEINBERG, Joel. Harm to Others. New York: Oxford University Press, 1984, p. 14/15, tradução livre.
3 JAKOBS, Günther. Suicídio, eutanásia e direito penal. Barueri: Manole, 2003, p. 47; ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, tomo I: fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. Madrid: 1997, p. 529.
4 Nesse sentido: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral.Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 340; GRECO, op. cit., p. 103; HUNGRIA, op. cit., p. 235-236; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 785-786.
5 Jescheck, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal: parte geral. Granada: 2002, p. 602.
6 CARVALHO, Érika Mendes de. Punibilidade e Delito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 118.
7 Jescheck, op. cit., p. 599.
8 CARVALHO, op. cit., p. 120-121.
9 JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general: fundamentos y teoria de la imputación. Madrid: 1995, p. 406.
10 CAMBRAIA, Flávia Siqueira. Autonomia, consentimento e direito penal: uma proposta de superação do modelo paternalista no tratamento dogmático das intervenções médicas. 454f. Belo Horizonte, 2019. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, p. 381-394.
11 PRADO, op. cit., p. 781.
Fonte:Conjur.com.br