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Juiz das garantias: O direito penal se faz por um bom direito processual
30/01/2020

 

Por Cecilia Mello e Celso Cintra Mori

“Um dos maiores males do nosso tempo é a pressa, a adesão de última hora, com que os espíritos reacionários se açodam, e a sem–cerimonia, com que a meia ciência jurídica, em vez de enfrentar e resolver, tecnicamente, os problemas, dinamita conceitos e princípios jurídicos, alguns fundamentais, sem perceberem que o seu terror pânico e a sua mediocridade científica estão a destruir construção de vinte e tantos séculos de civilização.” (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Geral, Vol.3, §352, pag. 451 da Edição Borsoi 1954)

Para entender os benefícios ou os malefícios que o instituto do juiz das garantias pode trazer para a sociedade brasileira é preciso examinar o direito à luz da ciência jurídica. O direito penal não se faz para solucionar um ou outro caso, em que se tenha como réu ou como vítima alguém amado ou odiado pelo observador. Os casos concretos, os fatos presentes e imediatos devem ser despersonalizados, para que deles se possam extrair regras que se apliquem em benefício do maior número imaginável de pessoas, durante o maior tempo possível, em todo o futuro que se possa antever.

O direito penal pune e deve punir. Mas a punição do infrator não é uma finalidade em si mesma. É o meio necessário e indispensável de proteger a sociedade, impedindo que o infrator possa continuar a causar danos individuais ou coletivos, e a forma de desestimular o infrator, ou qualquer outro membro da sociedade, a cometer outros delitos. Portanto, a finalidade do direito penal é garantir proteção à sociedade contra o dano injusto e, de outro lado, reeducar e reinserir socialmente aquele que foi condenado.

Ser preso sem ter cometido nenhum delito também é um dano injusto e grave, contra o qual todo integrante da sociedade se deve insurgir. Pela constatação estatística, algumas pessoas segundo a sua aparência, raça, cor ou extrato social têm maior probabilidade de serem presas injustamente. Mas o interesse social em uma coletividade sadia e democrática é o de que todo delinquente seja punido — leia-se, reeducado também — e o de que nenhum inocente seja condenado a nenhuma pena.

O direito penal se realiza mediante a busca de duas importantes garantias: a garantia de que todo culpado será punido e a garantia de que todo investigado terá amplo direito de defesa, para que não se condenem inocentes. Como tais garantias muitas vezes não são alcançadas, se transformam em objetivos a serem permanentemente perseguidos.

Entretanto, sempre que se fala em garantias do acusado, as discussões ideológicas invocam um falso dilema, como se houvesse necessidade de escolher a quem se quer garantir direitos: ao bandido ou à sua vítima. Evidentemente esse dilema não existe.

A garantia de que todo acusado terá todas as possibilidades de defesa e essas possibilidades assegurarão a aplicação justa e imparcial do direito não é uma garantia do bandido. Nem é contra a vítima. É uma garantia da sociedade, exatamente para que se possa decidir quem é efetivamente culpado e quem, embora corresponda pelas aparências à imagem que no imaginário do observador corresponda ao perfil de bandido, não é na verdade culpado e não pode ser tratado como tal pelo sistema jurídico.

Um sistema jurídico penal que não saiba, ou não se preocupe em saber, quem é culpado e quem não o é, será um sistema destinado ao fracasso. Não estará apto a garantir a segurança da sociedade. Quando se criam riscos ou costumes de tratar culpados e inocentes da mesma forma, o resultado é um sistema disfuncional que desorganiza a vida social e produz a sensação generalizada de arbítrio e insegurança.

Não é verdade e seria uma aberração jurídica dizer que o direito penal existe para proteger os culpados. O direito penal existe para proteger a sociedade. E essa proteção se faz com a efetiva condenação e punição dos culpados e a absolvição e preservação da dignidade dos inocentes. Uma sociedade que condena e pune inocentes é tão ruim e indesejável quanto uma sociedade que absolve culpados.

De um ponto de vista formal, o direito processual penal é acusatório. Portanto, é contra o acusado. O direito processual penal é o meio de satisfação da pretensão punitiva do estado. Formalmente, o processo penal é contra o acusado.

Entretanto, quando se examina em perspectiva histórica a correlação entre o direito penal e o direito processual penal, impõe-se observar que substancialmente o direito processual penal é uma garantia do acusado. Quando se diz que o direito processual penal é, em sua substância, garantia do réu, o que é verdade histórica, aciona-se o gatilho de vários preconceitos, porque se induz a confusão entre réu e culpado. O culpado, dizem os que assim se confundem, não pode ter garantias contra a sociedade. Ocorre que, no curso do processo, enquanto não concluída a persecução penal, não se sabe quem é acusado culpado, e quem é acusado inocente. A única forma de proteger o acusado inocente é protegendo todos os acusados, até efetivo julgamento de culpa.

Essa correlação entre o direito penal, como garantia da sociedade, e o direito processual penal, como garantia de defesa do réu, é de fundamental importância. Na medida em que se foi moderando nas diferentes sociedades o poder absoluto dos governantes, se foram criando direitos de cidadania. No campo penal passaram a existir regras de processo que permitissem a todo acusado o direito de defesa, que é fundamentalmente o direito de sustentar a própria inocência. Criou-se, portanto, com o direito processual penal, um direito do réu, voltado a defender sua inocência.

O sistema penal dos países civilizados passou, pois, a se sustentar em duas garantias que se contrapõem e se equilibram. De um lado, a garantia da sociedade, configurada no direito penal que define o que são condutas criminosas, e quais as respectivas penas. De outro, a garantia do acusado, que tem o direito de se defender e fazer prevalecer e vigorar sua inocência antes de sofrer as consequências que deve sofrer todo culpado.

Evidentemente, sempre se soube que entre os acusados poderiam existir culpados e inocentes. Como a comprovação da culpa não é e nunca foi instantânea, a aplicação das penas aos culpados e a liberação dos inocentes também não são instantâneas. Era preciso, pois, estabelecer, pela legislação, as regras sobre como tratar o acusado durante o tempo de duração do processo, enquanto não se sabe se ele é culpado ou inocente. Surgiu, nessa fase, a presunção de ausência de culpa ou a presunção de inocência.

Uma das primeiras e principais garantias do acusado, como garantia de direito processual penal, é a presunção de sua inocência, que deve persistir durante o trâmite do processo penal. Essa garantia não poderia prejudicar a garantia da sociedade de ser protegida de violações penais que o acusado pudesse praticar durante o andamento do processo e enquanto ainda frui a presunção de inocência. Por isso, em garantia da sociedade, o próprio direito processual penal abriu exceções às garantias do acusado e criou os institutos da prisão temporária e da prisão preventiva.

Ainda na vigência da presunção de inocência, e sem prejuízo dela, a prisão temporária pode ocorrer sempre que o isolamento social do investigado seja absolutamente necessário para o esclarecimento dos fatos relevantes relacionados à prática de determinados delitos. A prisão temporária, prevista na Lei 7.960/89, não é punição do investigado, mas ato de proteção da sociedade e de eficiência investigativa que somente tem cabimento nas hipóteses dos delitos especificados na lei, ou seja, quando houver indícios consistentes de autoria ou participação do investigado em crimes que a lei considera de elevada gravidade: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado de morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas, crimes contra o sistema financeiro e crimes previstos na Lei de Terrorismo (artigo 1º, III).

Portanto, em primeiro lugar, o que determina e justifica a prisão temporária é a natureza da conduta supostamente praticada pelo investigado, mas não só. Há necessidade de uma das duas outras premissas de cabimento estar presente: ser a medida imprescindível para as investigações (artigo 1º, I); ou na hipótese de o indicado não ter residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade.

Dessa forma, embora a prisão temporária só possa ocorrer nas hipóteses dos crimes que o legislador considerou graves e enumerou no inciso III do artigo 1º da Lei 7.960/89, ela não decorre exclusivamente da gravidade do delito. O que se indaga, para justificá-la, além da natureza do delito investigado, é a sua necessidade, da qual não se possa prescindir para o esclarecimento dos fatos imediatos e das circunstâncias perecíveis, para cuja elucidação se tenha a necessidade de ter o investigado à inteira disposição da Justiça. A prisão temporária, como se deduz da própria denominação, é de curta duração — cinco dias — e não pode exceder a dez, com a prorrogação.

Ainda na vigência da presunção de inocência, e sem prejuízo dela, pode ocorrer a prisão preventiva, que também se deve fundar no princípio da necessidade. Deve ocorrer sempre que, na dicção do artigo 312 do Código de Processo Penal, houver necessidade dela para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Mas, sempre com a exigência de haver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado. Mais do que isso, a excepcionalidade da prisão preventiva fez com que o legislador determinasse que a sua decretação só tem cabimento na hipótese de não ser cabível a sua substituição por outras medidas cautelares. E o não cabimento de cautelares alternativas à prisão deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto e de forma individualizada, nos termos do §6 º do artigo 282 do CPP, com a sua nova redação.

Pode ocorrer também por transgressão a medidas cautelares anteriormente impostas, mas nesse caso os mesmos pressupostos devem ter sido constatados de início. A prisão preventiva também não é punição do investigado ou acusado. É medida protetiva da sociedade em benefício da qual se devem garantir a ordem pública, a ordem econômica, a eficiência do processo e a aplicação da lei penal e, apenas se comprovado, o perigo gerado pelo estado de liberdade do investigado ou acusado.

Questão tormentosa é a de se saber até que ponto se deve manter a presunção de inocência, ou se essa desaparece em determinadas circunstâncias.

Cuidando-se de presunção, que é por natureza uma crença, ou um estado psicológico em relação à determinado fato, a questão é a de se saber se a presunção de inocência deve prevalecer enquanto não houver condenação definitiva, mesmo naqueles casos em que os fatos já comprovados indiquem claramente a autoria e a culpa, já reconhecidas em decisão judicial sujeita a recurso. A presunção de inocência do acusado confesso ou do acusado preso em flagrante, ou mesmo daquele que já foi condenado em primeira e ou segunda instância, é uma regra processual de garantia de defesa que aparentemente viola o conceito semântico de presunção. Presunção, como decorre da própria expressão linguística, é uma suposição que independe de demonstração. A presunção se impõe não como verdade, mas como suposição que se deve admitir provisoriamente como verdade.

Toda presunção, no plano mental, desaparece ante a prova em contrário. No plano legal, entretanto, a presunção de inocência não desaparece automaticamente a partir do momento em que não mais se justifique psicologicamente. Legalmente, a presunção de inocência só desaparece no momento ou fase processual que o legislador constitucional definiu como seu ponto final. Ou seja, quando a decisão condenatória já não puder ser modificada e, sendo definitiva, fizer coisa julgada. Assim o diz a Constituição.

Esses pesos e contrapesos do sistema composto pelo direito penal e pelo direito processual penal, sempre nos limites e garantias da ordem constitucional, constituem um importantíssimo e sensível equilíbrio entre, de um lado, os interesses da sociedade, que quer e tem o direito de ser protegida dos atos criminosos e, do outro, os interesses dos indivíduos inocentes que se vejam como suspeitos de atos que não praticaram. Esses interesses individuais em parte se confundem com os interesses das sociedades civilizadas, que não se beneficiam com a punição de inocentes.

A responsabilidade pela manutenção desse equilíbrio, de relevante interesse social, é do juiz criminal.

Entretanto, na organização judiciária brasileira, o juiz criminal exerce múltiplas funções, que se iniciam no marco zero da investigação criminal e prosseguem até à prolação da sentença, quando o juiz dirá, com autoridade jurisdicional, se o acusado é inocente ou culpado.

Nessa trajetória do processo, cabendo-lhe decidir incidentalmente se é ou não caso de prisão provisória, de prisão preventiva ou de medidas cautelares diversas, e decidir se está regular a condução do inquérito, e se aceita ou não a denúncia, e se defere ou não as várias modalidades de prova, o juiz vai formando as suas convicções sobre os fatos e as responsabilidades que deles possam decorrer. O juiz, porque é humano, formará conceitos e poderá, também, formular preconceitos. Terá sentimentos e pressentimentos em relação ao acusado, emoções que, por mais contidas que sejam, se refletirão em todas as suas decisões. Na experiência do seu cotidiano, verá acusados que acredita serem culpados, mas que se estejam beneficiando por fragilidades da acusação. E verá acusados que acredita serem inocentes, mas que estejam sendo prejudicados por insuficiências da defesa. Como presidente e condutor do processo, e como cidadão culturalmente preocupado com a Justiça, estará muitas vezes inclinado a corrigir rumos do processo, a suprir falhas e coibir eventuais abusos de seus protagonistas. Mas, na hora de proferir a sentença, o juiz deverá fazer o esforço sobre-humano de esquecer tudo que viu, ouviu e sentiu no curso do processo para, exclusivamente, com os elementos definitivos que se encontrem nos autos no momento da sentença, dizer se o acusado é inocente ou culpado.

Toda essa trajetória emocional, técnica, intelectual e de responsabilidade social o juiz criminal brasileiro deve percorrer em absoluta solidão. Não lhe é dado, sob risco de perder a imparcialidade, compartilhar dúvidas, certezas ou emoções nem com a acusação, nem com a defesa. E, tudo isso não apenas em relação a um processo, mas em relação a centenas, às vezes milhares, de processos.

A organização judiciária brasileira enfrenta enormes desafios, decorrentes de fundamentais transformações sociais, especialmente no que diz respeito ao direito penal. O surgimento do direito penal tributário, do direito penal ambiental, e do direito penal de proteção ao consumidor e de outras normas penais relativas à atividade econômica e financeira determinaram a configuração de um direito penal empresarial. Paralelamente, em razão da forma como se deu a abertura política após a ditadura militar, com a proliferação de partidos políticos com reduzido controle normativo e o surgimento do chamado presidencialismo de coalizão, contaminou-se boa parte da atividade política com práticas que são objeto do direito penal. Com esses fenômenos, o direito penal e processual penal se tornaram muito mais complexos e as necessidades de garantias tanto da sociedade quanto dos acusados se tornaram muito mais urgentes, agudas e polêmicas. Dentro desse contexto histórico e de atualidade é que se precisa analisar e entender a figura do juiz das garantias, criada pela Lei 13.964/19.

Fonte:Conjur.com.br

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