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O acordo no processo criminal é um caminho sem volta
01/07/2019

 

Por Vladimir Passos de Freitas

O Brasil, por séculos, adotou o princípio da obrigatoriedade da ação penal, através do qual o Ministério Público, tomando conhecimento de um fato típico e da sua autoria, estava obrigado a denunciar o suspeito, seguindo o processo até sentença. Mas, no mundo real o princípio era contornado (e.g., arquivamento de inquérito policial de indiciado que agiu em legítima defesa).

Esta situação sofreu discreto rompimento com a Constituição de 1988, que no art. 98, I, permitiu a implantação de Juizados Especiais para conciliação, julgamento e execução de causas cíveis e criminais. Na sequência, a Lei 9.099, de 1995, permitiu a transação nas ações penais de menor potencial ofensivo, com pena máxima de 2 anos, e a suspensão do processo nas punidas com um mínimo de 1 ano de prisão.

A justificativa para a mudança foi a necessidade de reduzir-se a quantidade de processos nas Varas Criminais. O aumento da população, a migração campo cidade, com a formação de populosos núcleos urbanos, a flagrante queda do respeito à autoridade, problemas econômicos e sociais, fizeram com que o congestionamento judicial continuasse.

O acordo na esfera criminal provoca discussões de ordem ética, filosófica, religiosa e política. Para muitos ele ofende a concepção de Justiça já que abandona a busca da verdade optando por encontrar uma solução, mesmo que não seja a ideal.

Sob diversos nomes, transação, suspensão do processo, plea bargain, acordo de admissão de culpa, acordo de não persecução penal, o certo é que todos buscam a mesma finalidade: por fim ao processo criminal de forma abreviada, definindo-se o conflito em menor prazo e com menor custo.

Vitor Souza Cunha, em obra de consulta obrigatória aos estudiosos do tema, dá-nos o seguinte conceito:

Acordos de admissão de culpa são negócios jurídicos blaterais de natureza mista, firmados após a estabilização da relação processual, que buscam abreviar o procedimento ou antecipar o julgamento da causa a partir da admissão de culpabilidade do acusado, que renuncia ao direito de resistir à pretensão acusatória em troca de algum benefício processual ou material. [1]

Os sistemas em que os acordos ocorrem variam em razão do tempo e lugar. No sistema adversarial da common law, a transação é encarada como uma disputa entre as partes (promotor e advogado), da qual se sairá melhor o que tiver maior poder de persuasão. O promotor é a figura central, com larga possibilidade de atuação e não persegue Justiça, mas sim resultados. No sistema europeu continental, chamado de inquisitorial, o juiz participa do acordo, mesmo que indiretamente, sendo mais intensa a busca da verdade real.

Estas posições filosóficas diferentes fazem com que nos países da common law, em especial nos Estados Unidos, acordos sejam celebrados de forma pragmática há séculos. Nos países da civil law, os acordos foram adotados mais recentemente. Na Alemanha eles tiveram início nos anos 1970, mesmo sem haver base legal, tendo sido regulamentados somente em 2009 com a reforma do CPP. Na Itália foram introduzidos em 1989, com a vigência do novo CPP.

Atualmente, os sistemas aproximam-se, em que pese a diversidade de seus princípios. E ao chegar a outros países, como os ibero americanos, amoldam-se às peculiaridades locais. Assim, temos hoje, diversificadas formas de conciliação na esfera criminal em países como a Colômbia, Chile, Uruguai e Argentina. Nesta, as províncias têm mais autonomia do que nossos estados, tendo cada uma o seu Código de Processo Penal.

Pois bem, o Brasil, que se introduziu no sistema em 1995, com a Lei dos Juizados Especiais, tem, agora, nova proposta formulada no PL 882/2019, que tramita na Câmara dos Deputados. Este PL assemelha-se ao PL 10.372/2018, que inclusive tem proposta de não persecução penal para crimes com pena inferior a 4 anos.

São muitas as vantagens das inovações. Sinteticamente, pode-se afirmar que: a) abrevia o julgamento de processos criminais que, no Brasil, atingem muitos anos; b) abre espaço para a tramitação célere de processos de maior gravidade; c) economiza gastos com a realização de audiências, presença de testemunhas, transporte de réus presos e outros; d) retira daqueles que se envolveram incidentalmente em uma ação penal, o estigma de serem réus, devolvendo-lhes a segurança de poder planejar seu futuro.

Vejamos as alterações propostas no PL 882/2019:

1) Acordo de não persecução penal
Acrescenta-se o art. 28-A do CPP, permitindo-se que o MP (também o querelante nos crimes de ação privada) proponha ao acusado a não persecução penal nos crimes cuja pena máxima atinja 4 anos, por exemplo, apropriação indébita (art. 168 do Cód. Penal). Que sentido faz processar um empregado que se apodera de um bem do seu empregador e, descoberta sua ação, paga o valor correspondente?

Mas este tipo de proposta não é um ato de caridosa benevolência do Estado. Para ser ofertada ela exige: a) que o acordo seja suficiente para a reprovação e prevenção do crime; b) que não seja caso de arquivamento do inquérito policial; c) que o investigado tenha confessado; d) que a infração penal não tenha sido feita com violência ou grave ameaça; e) que o acusado se disponha a reparar o dano, renunciar aos instrumentos, produto ou proveito do crime, prestar serviços à comunidade, pagar prestação pecuniária e cumprir outras condições indicadas pelo MP.

Ainda, o acordo não será possível se o investigado for reincidente, tiver sido beneficiado com benefício semelhante nos últimos 5 anos e os antecedentes, motivos e circunstâncias apontarem pela insuficiência da medida. Como se vê, o acordo para não ser processado exige múltiplos requisitos e será concedido apenas em circunstâncias que se evidencie sua utilidade.

O ajuste será celebrado entre o MP, investigado e seu defensor. Mas, ao contrário do sistema norte-americano, terá que ser homologado pelo juiz. O magistrado ouvirá o acusado em audiência na presença de seu defensor e, como é óbvio, se vislumbrar alguma ilegalidade (hipótese difícil, mas possível), não o homologará.

E mais. O juiz poderá considerar insuficientes ou inadequadas as condições. Por exemplo, o MP dispensa serviços comunitários. Nesta hipótese o magistrado devolverá os autos ao MP para reformulação, complementação das investigações ou denúncia.

Caso o acordo seja homologado a vítima será informada. E se não cumprir o ajuste o MP comunicará ao juízo para rescisão e oferecimento de denúncia. Como se vê, ao MP é que caberá a fiscalização das condições. Por outro lado, caso haja pedido de rescisão, obviamente a denúncia deverá ser apresentada no ato, por economia processual. O acordo não constará da certidão de antecedentes, o que configura enorme vantagem ao acusado para a sua vida civil (e.g., na busca de emprego).

Cumprida a avença será declarada extinta a punibilidade. Durante a vigência do acordo a suspensão estará suspensa, o que, apesar de óbvio, é dito expressamente para evitar discussões.

2) Acordo quando proposta a ação penal
O PL 882 acrescenta o art. 395-A ao CPP, prevendo a possibilidade de acordo a partir do recebimento da denúncia até o início da instrução do processo. O prazo, normalmente de meses, dá ao acusado a possibilidade de pensar a respeito da conveniência de entrar em composição amigável ou seguir adiante com seu processo.

As condições são: a) confissão da prática do crime; b) requerimento de que a pena seja aplicada dentro dos parâmetros legais (p. e., peculato, art. 312 do CP, 2 a 12 anos), inclusive podendo propor a pena; c) manifestação das partes dispensando a produção das provas e abrindo mão do direito de recorrer.

O § 2º permite que as penas sejam diminuídas em até a metade, alterado o regime de cumprimento das penas ou promovida a substituição da pena privativa por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo.

Este dispositivo abrevespaço para múltiplos e diferentes acordos. Por exemplo, um jovem primário, que pratica um roubo com uma faca (art. 157 do CP), poderá obter diminuição da pena até a metade (2 anos, na mínima) e substituí-la por restritiva de direitos, evitando o encarceramento que o levaria a uma ressocialização muito mais difícil.

O § 5º dá atenção à vítima da infração, prevendo que o acordo preveja valor mínimo para a reparação dos danos, por ela, sofridos. Excelente, nossa legislação precisa preocupar-se mais com os que sofrem os efeitos da prática criminosa.

A celebração do acordo exige a concordância de todas as partes, sendo que o MP poderá deixar de celebrar o acordo com base na gravidade e nas circunstâncias da infração penal. Portanto, não há direito subjetivo do réu a uma composição amigável. O acusado reincidente ou criminoso habitual poderá obter o acordo, porém, parcela da pena será cumprida em regime fechado. Abre-se exceção para infrações penais anteriores insignificantes (v.g., condenado por ameaça).

O acordo, será homologado pelo juiz em audiência, na qual verificará se é mesmo o desejo do acusado. O juiz não homologará o acordo se a proposta de penas formulada pelas partes for manifestamente ilegal ou manifestamente desproporcional à infração ou se as provas existentes no processo forem manifestamente insuficientes para uma condenação criminal.

Uma vez homologado, o acordo tem força e efeitos de sentença condenatória. E se não for homologado, será desentranhado dos autos ficando proibidas quaisquer referências aos termos e condições pactuados pelas partes e pelo juiz.

Eis, em síntese, as modificações que estão abertas à discussão no Parlamento. Emendas poderão alterar o projeto de lei e, quiçá, aperfeiçoá-lo. No entanto, o importante é que o Brasil saia do século XIX e, utilizando esta ferramenta que se lhe oferece, tornando mais eficiente e menos custosa a Justiça Criminal.


[1] CUNHA, Vitor Souza. Acordos de Admissão de Culpa no Processo Penal. Salvador: Ed. Podivm, 2019, p. 98

 é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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