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 Informativo STJ
QUINTA TURMA
Processo

RHC 150.707-PE, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. Acd. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, por maioria, julgado em 15/02/2022.

Ramo do Direito

DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL

Tema

Abandono de incapaz com resultado morte. Dever de assistência. Assunção fática da posição de garante. Atipicidade penal não configurada de plano. Necessidade de prosseguimento da ação penal.

DESTAQUE

Não há falar em trancamento da ação penal quando a complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a eles, na conformidade da plausível articulação de juízos normativos preliminares da denúncia, implicam a conveniência da instrução probatória.

 

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Trata-se de pedido de trancamento de ação penal sob fundamento do comprometimento do matricial dever de assistência, a improbabilidade do perigo decorrente da omissão e a imprevisibilidade objetiva do resultado culposo.

Para análise da isenção da responsabilidade penal imputando o comprometimento do dever de assistência em virtude do comportamento da própria vítima deve-se compreender a complexa estrutura normativa desses tipos penais omissivos próprios e impróprios.

Sucintamente, a posição de garante, ao qual é imposto o dever de impedir o resultado, tem suas hipóteses descritas nas alíneas do art. 13, § 2º, do Código Penal.

 

Evidentemente, o dever geral de proteção previsto no artigo 227 da Constituição Federal e reforçado no artigo 70 da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA) se traduz numa norma de conteúdo programático e não se amolda à alínea a do art. 13, § 2º, do Código Penal.

Esse dever geral não é compatível com a especial relação disposta no delito de abandono de incapaz, que exige um dever de assistência decorrente de cuidado, guarda, vigilância ou autoridade entre os sujeitos ativo e passivo.

Ao reverso, esses dispositivos representam mais um objetivo mirado pelo constituinte, que impõem principalmente ao Poder Público uma atuação orientada com a finalidade de proteger os interesses das crianças e adolescentes, em virtude da sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento.

Obviamente, esse dever de alguma forma também é atribuído à sociedade, porém, não na acepção especial como a prevista na elementar do delito em questão, mas como um dever genérico, que pode se amoldar em outra infração penal, como na omissão de socorro, por exemplo.

No presente caso, o dever de assistência, que integra o tipo, adviria da assunção fática da posição de garante, nos precisos termos da alínea b do dispositivo supracitado.

A esse respeito, não obstante a adoção da teoria formal pelo Código Penal - prevista no art. 13, § 2º, do CP -, a doutrina cuidou de reavaliar o instituto através de critérios materiais, pois, aquelas não atendem suficientemente ao princípio da legalidade, nem são capazes de retratar todas as hipóteses geradoras de uma posição de garantidor. Dessa forma, inserida no contexto de especial posição de defesa de certos bens jurídicos, assentou-se que dela faz parte a "assunção, por parte de alguém, de uma função protetiva unilateral ou bilateral, que independentemente de um contrato formal, conduza a que se lhe confie a proteção do bem jurídico".

Relativamente a essa hipótese de assunção do encargo, reputa-se indispensável, evidentemente, a voluntariedade e a consciência do dever assumido. Veja-se, também, que da assunção decorre uma expectativa, uma confiança de que haverá por parte do garantidor a efetiva assistência ao incapaz.

Efetivamente, a assunção fática deve ser expressa, verbalmente aferível, ou demonstrada pela exteriorização do comportamento da pessoa que efetivamente assume a responsabilidade de resguardar o incapaz dos prováveis perigos e lesões a que estará submetido se sozinho estiver.

Indubitável que a assunção da posição de garantidor não será irrestrita; terá seus limites definidos pelo contexto de proteção aos quais aderiu a pessoa que se dispôs a servir como responsável pela elisão do risco/resultado.

Na macro perspectiva do mandamus, o aspecto que desponta como mais relevante é a tenra idade da criança (cinco anos ao tempo do fato), de forma a ser razoável deduzir que, nas circunstâncias reveladas pela investigação, se o infante logrou se subtrair da assistência, a omissão penalmente relevante já estaria configurada de per si porque a paciente, presumivelmente, não agira com a necessária cautela e com a abnegação que lhe era devida.

De toda sorte, em casos desse peculiar jaez (criança de pouca idade), se e enquanto o cuidado, guarda, vigilância ou autoridade estiverem comprometidos pela fuga inevitável do incapaz, não haverá se atribuir ao garantidor os riscos do período em que o sujeito passivo permaneceu desassistido.

No entanto, as nuances que definirão esse lapso temporal atípico deverão ser objeto de cautelosa, sensível e detalhada instrução probatória, pois não restará configurado o delito omissivo quando demonstrado que a pessoa à qual se atribui a obrigação de evitar o resultado não tinha condições de agir para impedi-lo.

Portanto, da análise perfunctória consentânea à via estreita do habeas corpus, não se vislumbra inequívoca atipicidade da conduta irrogada à paciente.

Ademais, com esteio nos fatos descritos na denúncia, teoricamente, é possível identificar na exordial acusatória as situações ensejadoras do perigo concreto: 1) a tenra idade da vítima (absolutamente incapaz de defender-se de quaisquer situações de perigo que se apresentassem à sua frente); 2) a falta de familiaridade com o local; 3) a incapacidade de determinar o correto curso do elevador, tendo em vista que acionou diversos botões aleatoriamente, exceto o que o levaria ao encontro de sua genitora, no pavimento térreo.

Com efeito, a complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a eles, na conformidade da plausível articulação de juízos normativos preliminares da denúncia implicam a conveniência da instrução probatória.

 
 
SEXTA TURMA
Processo

HC 674.139-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 15/02/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL

Tema

Busca e apreensão. Domicílio como expressão do direito à intimidade. Asilo inviolável. Exceções constitucionais. Interpretação restritiva. Ausência de fundadas razões. Ausência de consentimento válido do morador. Indução a erro. Vício da manifestação de vontade. Provas obtidas. Nulidade.

DESTAQUE

A indução do morador a erro na autorização do ingresso em domicílio macula a validade da manifestação de vontade e, por consequência, contamina toda a busca e apreensão.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). No mesmo sentido, neste STJ: REsp 1.574.681/RS.

No caso, apesar da menção a informação anônima repassada pela Central de Operações da Polícia Militar - Copom, não há nenhum registro concreto de prévia investigação para apurar a conformidade da notícia, ou seja, a ocorrência do comércio espúrio na localidade, tampouco a realização de diligências prévias, monitoramento ou campanas no local para averiguar a veracidade e a plausibilidade das informações recebidas anonimamente e constatar o aventado comércio ilícito de entorpecentes. Não houve, da mesma forma, menção a qualquer atitude suspeita, exteriorizada em atos concretos, nem movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas.

Por ocasião do julgamento do HC 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 15/3/2021), a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais. Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões: a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige- se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito; b) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada; c) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação; d) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo; e) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

As regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, de sorte a franquear àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor.

Na hipótese em análise, ainda que o acusado haja admitido a abertura do portão do imóvel para os agentes da lei, ressalvou que o fez apenas porque informado sobre a necessidade de perseguirem um suposto criminoso em fuga, e não para que fossem procuradas e apreendidas drogas. Ademais, se, de um lado, deve-se, como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado, que a notoriedade de frequentes eventos de abusos e desvios na condução de diligências policiais permite inferir como pouco crível a versão oficial apresentada no inquérito policial, máxime quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota indisfarçável desejo de se criar narrativa que confira plena legalidade à ação estatal. Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas - avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos - ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio pro libertas).

Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador. Entretanto, não se demonstrou preocupação em documentar esse consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo.

Sobre a gravação audiovisual, aliás, é pertinente destacar o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF 635 ("ADPF das Favelas", finalizado em 3/2/2022), oportunidade na qual o Pretório Excelso - em sua composição plena e em consonância com o decidido por este Superior Tribunal no já citado HC 598.051/SP - reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros, que "o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos". Dessa forma, em atenção à basilar lição de hermenêutica constitucional segundo a qual exceções a direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, prevalece, quanto ao consentimento, na ausência de prova adequada em sentido diverso, a versão apresentada pelo morador de que apenas abriu o portão para os policiais perseguirem um suposto autor de crime de roubo.

Partindo dessa premissa, isto é, de que a autorização foi obtida mediante indução do acusado a erro pelos policiais militares, não pode ser considerada válida a apreensão das drogas, porquanto viciada a manifestação volitiva do paciente. Se, no Direito Civil, que envolve direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, a indução da parte adversa a erro acarreta a invalidade da sua manifestação por vício de vontade (art. 145, CC), com muito mais razão deve fazê-lo no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis do indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.

A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação a norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes - relativa ao delito descrito no art. 33 da Lei n. 11.343/2006 -, porque apoiada exclusivamente nessa diligência policial.

Ressalta-se que, conquanto seja legítimo que os órgãos de persecução penal se empenhem em investigar, apurar e punir autores de crimes mais graves, os meios empregados devem, inevitavelmente, vincular-se aos limites e ao regramento das leis e da Constituição Federal. Afinal, é a licitude dos meios empregados pelo Estado que justificam o alcance dos fins perseguidos, em um processo penal sedimentado sobre bases republicanas e democráticas.

 

 
Processo

RHC 145.225-RO, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por maioria, julgado em 15/02/2022.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL PENAL

Tema

Prisão em flagrante. Pedido de conversão do flagrante em cautelares diversas pelo Ministério Público. Magistrado que determina a cautelar máxima. Possibilidade. Prisão preventiva de ofício. Não ocorrência. Anterior provocação do Ministério Público.

DESTAQUE

A determinação do magistrado pela cautelar máxima, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Cuida-se de decretação da cautelar máxima pelo Magistrado diante do pedido do Ministério Público, durante a audiência de custódia, de conversão da prisão em flagrante em cautelares diversas.

Inicialmente, frisa-se que não obstante o art. 20 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) ainda autorize a decretação da prisão preventiva de ofício pelo Juiz de direito, tal disposição destoa do atual regime jurídico. A atuação do juiz de ofício é vedada independentemente do delito praticado ou de sua gravidade, ainda que seja de natureza hedionda, e deve repercutir no âmbito da violência doméstica e familiar.

Contudo, a decisão que decreta a prisão preventiva, desde que precedida da necessária e prévia provocação do Ministério Público, formalmente dirigida ao Poder Judiciário, mesmo que o magistrado decidida pela cautelar pessoal máxima, por entender que apenas medidas alternativas seriam insuficientes para garantia da ordem pública, não deve ser considerada como de ofício.

Isso porque uma vez provocado pelo órgão ministerial a determinar uma medida que restrinja a liberdade do acusado em alguma medida, deve o juiz poder agir de acordo com o seu convencimento motivado e analisar qual medida cautelar pessoal melhor se adequa ao caso.

Impor ou não cautelas pessoais, de fato, depende de prévia e indispensável provocação. Entretanto, a escolha de qual delas melhor se ajusta ao caso concreto há de ser feita pelo juiz da causa. Entender de forma diversa seria vincular a decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo Ministério Público, de modo a transformar o julgador em mero chancelador de suas manifestações, ou de lhe transferir a escolha do teor de uma decisão judicial.

Em situação que, mutatis mutandis, implica similar raciocínio, decidiu o STF que "... 3. Prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público, que, posteriormente requer a sua revogação. Alegação de que o magistrado está obrigado a revogar a prisão a pedido do Ministério Público. 4. Muito embora o juiz não possa decretar a prisão de ofício, o julgador não está vinculado a pedido formulado pelo Ministério Público. 5. Após decretar a prisão a pedido do Ministério Público, o magistrado não é obrigado a revogá-la, quando novamente requerido pelo Parquet. 6. Agravo improvido (HC n. 203.208 AgR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 30/8/2021).

Saliente-se que esse é igualmente o posicionamento adotado quando o Ministério Público pugna pela absolvição do acusado em alegações finais ou memoriais e, mesmo assim, o magistrado não é obrigado a absolvê-lo, podendo agir de acordo com sua discricionariedade.

Dessa forma, a determinação do magistrado, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio, uma vez que lhe é permitido atuar conforme os ditames legais, desde que previamente provocado, no exercício de sua jurisdição